1. Tenho cá meu modo muito particular de escrever - muita ironia (em Teologia no Divã, publicado na Pistis & Praxis, minha amiga Mary Rute Esperandio encontrou "excessivas ironias", subtraí-as com liberalidade, o artigo foi publicado e... ainda restaram muitas), muita hipérbole, recursos retóricos, obviamente, porque talvez não seja realmente um bom "jornalista", talvez nem mesmo um bom historiador eu daria, conquanto assim meu amigo Haroldo me julgue - talvez, vá saber, eu desse um bom advogado...
2. No início do meu doutorado, caiu-me a mão, sem querer, Morin. Devorei os seis volumes de O Método - para mim, uma das obras mais importantes do século XX, uma preparação à altura dos desafios do século XXI. Sem nenhum tempo para fazer uma resenha à altura da coleção, criei um pequeno espaço em ouviroevento, e escrevi a declaração sensacionalista: "se eu fosse você, parava de fazer tudo que estou fazendo... e lia Morin". Sensacionalista ou não, ainda penso assim. Mas julgo-me cada vez mais um revolucionário menor, alguém absolutamente desprovido da capacidade de convencer quem quer que seja a fazer qualquer coisa, porque, de todos que me cercam, que eu saiba, apenas um, que nem aluno regular meu era, dedicou-se ao trabalho. Mesmo meus amigos mais chegados passaram à distância de minha recomendação, e os vejo penando com questões já superadas por Morin - mas eles não me crêem...
3. Essa lição deveria ser suficiente para eu perder a mania de achar que uma observação que faço mereça atenção dos transeuntes. Todavia, além de irônico e hiperbólico, sou compulsivo, de modo que, mesmo sabendo que dizê-lo e não dizê-lo dá no mesmo, não me furtarei à sensação estética de o dizer: "parem tudo o que estão fazendo e leiam Losurdo". Principalmente teólogos, filósofos e cientistas políticos - é absolutamente desconstrucionista a obra - para mim - máxima desse historiador: Nietzsche, o rebelde aristocrata. Como o próprio Losurdo afirmou, o caráter aforístico da obra de Nietzsche facilita que qualquer um tome seu discurso e o aplique ao que quer que deseje, e, meus amigos, isso criou uma absurda nuvem de escombros e fuligem histórico-filosófica sobre o filósofo. Já li muita coisa sobre Nietzsche - isto é, para os padrões de um teólogo, claro -, e nunca li nada comparado ao que Losurdo escreve. Nietzsche, para mim, até hoje, fora um desconhecido, e, pelo que sei do que de Nietzsche falam e escrevem expoentes da filosofia internacional, também eles conhecem outra pessoa, talvez criação de seus desejos político-filosóficos - mas não Nietzsche. Não posso crer que, conhecendo esse Nietzsche que Losurdo descreve em detalhes - "cada parágrafo" de Losurdo se faz acompanhar de tripla fonte: obras de Nietzshce, suas cartas escritas e recebidas e obras de terceiros -, escrevam dele o que se escreve.
4. É curioso como ocorre com Nietzsche exatamente o que ocorreu com Jesus - o que Jesus foi, de fato, enquanto homem histórico, não cabe em qualquer dos cômodos da catedral doutrinária erigida pela Teologia (por isso se prefere a metáfora à história, porque a história reduziria a uma fantasia 9/10 da "tradição", ao passo que a metáfora mantém as rotativas rodando, rodando, rodando...). O Jesus histórico ficaria horrorizado, se lhe contassem sobre o que fizeram com sua imagem. Algo muito parecido ocorre com Nietzsche - por razões sabe Deus quais, inventaram-nos um outro Nietzsche, talvez o tenham instrumentalizado, de modo que o Nietzsche de carne e osso - mas de que servem os homens de carne e osso? - jaz sepultado e morto. Já o Nietzsche-metáfora e o Cristo-da-fé freqüentam os salões - inclusive no mesmo time.
5. Morto - todavia, não tão definitivamente que não possa ser exumado (falo do filósofo, evidentemente!) - e Losurdo cavou fundo! Começo a perceber que terei de rever parte considerável de minhas percepções sobre Nietzsche - não há nada de necessariamente ruim nisso. Todavia, aprendo, mais uma vez, que deixar o trabalho de nos informar sobre o passado a filósofos e teólogos é pedir para ser enganado, é gostar de ser enganado (ou de engar, eventualmente?), e preferir a dissimulação, o engodo, a estética das montagens convenientes, a plástica teatral dos interesses - à facticidade da história, que, a despeito das teses narratológicas, ri-se de nós, porque não há esforço humano capaz de apagar o passado, conquanto um simples gesto de esferográfica possa adulterá-lo. Sob a tinta azul, entre a tinta e a celulose branca, sobre a linha da pauta, espera, pacientemente, o fato. E como os fatos são fáceis de colher, meus amigos - como peixes em lagoas deles fervilhada - eles saltam para nós, quando os queremos, de fato.
6. No entanto, eu pressinto, o movimento de interrupção da série de fantasias metafóricas sobre Nietzsche não deve terminar tão cedo. O recurso à metáfora é um modo de nos apropriarmos da sagacidade filosófica, da falta de floreios, da lucidez irradiante de Nietzsche, desviando-nos de sua patológica consciência de classe, sua compulsão aristocrática, sua posição política escravocrata, cínica, um Marx ao contrário, surpreendentemente, nesse sentido, um signatário da República - daquela, que os filósofos também escondem, uma vez que Maquiavel, ao lado de Platão, assume as feições de Gandhi...
7. Losurdo deve ser lido. Sim, ele nos assedia no momento em que estamos a fechar dissertações, a encadernar teses, a publicar textos intermináveis - e, tão logo toquemos a caixa mágica que nos chega à mão, nossos textos, todos, são como que imediatamente corroídos pelo tempo, como que devorados por traças, como que diluídos em ácido, e revelam-se... quimera... Sim, haveremos de perder muito do que cuidamos saber, e muito do que escrevemos há de ser lançado à lava ígnea das bobagens. No entanto, meus amigos, sairemos de Losurdo com carne e ossos nas mãos, e saberemos, finalmente, quem foi e o que disse aquele filósofo cujo fim foi a loucura.
8. Acho que terei de ler Nietzsche todo outra vez. "Zaratustra não deve falar ao povo" - e, todavia, eu o ouvi, e agora é tarde, meu amigo...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
sexta-feira, 26 de novembro de 2010
A máscara que Nietzsche pôs na cara
1. Losurdo está a me dar uma surra tão grande, que volta e meia tenho que tomar as obras de Nietzsche, em minha estante, e conferir se o que está lá escrito é mesmo aquilo que Losurdo diz. É a segunda experiência desse tipo - a primeira, foi quando A Invenção da Mitologia, de Marcel Detienne, por dizer coisas tão "novas" e inusitadas - para mim - a respeito de Platão, fazia-me recorrer de dez em dez minutos a República, para checar as informaões. Com Losurdo, a situação é ainda mais grave. Num primeiro momento, a desconstrução de Losurdo vai me dando entusiasmo, porque toca o coração da recepção metafórica do filósofo, e faz dos representantes dessa corrente verdadeiras falsas testemunhas de um inquérito - eles mentem, seja para si, seja para mim. Nesse caso, só posso experimetnar alegria, primeiro, por confirmar minhas suspeitas de que se lia mal o filósofo e, segundo, por me libertar das garras da metáfora da recepção - que detesto.
2. Todavia, ai!, Losurdo começa, vagarosa, mas inexoravelmente, a aproximar-se da desconstrução de meu própro bunker. Aí, meus amigos, como não haveria de ser?, aquele entusiasmo vai se transformando em perplexidade. Losurdo, agora, me gasta uma seção inteira, de quatro páginas, para me pintar Nietzsche como um "novo" Platão - o da República - a mesmíssima de Detienne. Modo meu de dizer que Losurdo afirma que Nietzsche tinha consciência de que a religião devia ser usada pela classe dominante para, por meio dela, "educar e modelar" o povo. A denúncia de ópio, de Marx, assume, em Nietzsche, conotação de prescrição médica - senhores, senhores, ao povo, religião na veia, posto que, assim, eles terão por certo que seu sofimento, necessário (à manutenção da ordem [que nos beneficia, a nós, classe dominante]) é não apenas natural, mas prescrição divina...
3. Corri, a checar a citação em Para além de bem e mal, parágrafo 61, e, sem tirar nem pôr, lá está. Meus malditos olhos, se passaram, passaram por aquela parágrafo sem se dar conta do que liam? Tenho em minha "defesa" as marcas a giz de cera que acompanham as páginas dessa obra, o que sigifica que a leitura se deu há muitos anos atrás, mais de dez, porque não uso giz de cera para marcar meus livros há mais de uma década anos. Já se disse que não se deve ler um livro para o qual não se está preparado, e é provável que eu não estivesse mesmo preparado para o Parágrafo 61 - ou, não vou descartar a hipótese, não quisesse ver, então, o que agora Losurdo me lança às faces.
4. Saio, pois, cocheando, manco, dessa surra de historiador. E, no entanto, já que tomo Para além do bem e do mal nas mãos, permitam-me a transcrição de um parágrafo que, com uma só apresentação, representa o significado da obra de Losurdo - retirar a máscara de Nietzsche, bem como ilustrar como o próprio Nietzsche pode ter preparado a armadilha em que caíram (caímos?) os receptadores metafóricos de sua filosofia e obra. Ei-lo, mandando um recado a seus posteriores;
Tudo o que é profundo ama a máscara; as coisas mais profundas têm mesmo um ódio à imagem e ao simbolo. Não será a antítese o disfarce adequado de que se serve o pudor dum deus? Eis um problema digno de ser posto: seria de espantar que um místico qualquer não tivesse já ousado algo de semelhante. Há factos de caráter tão delicado que convém encobri-los e torná-los irreconhecíveis por meio de uma grosseria; há certas manifestações de amor e de uma generosidade exuberante, depois das quais nada há de mais aconselhável do que pegar num bastão e dar uma sova à testemunha ocular: assim se turva a sua memória. Certas pessoas sabem perfeitamente turvar e maltratar a própria memória para, ao menos, se vingarem desse único cúmplice: - o pudor é muito engenhoso. Não são as piores coisas que nos causam mais vergonha: não há só maldade atrás sde uma máscara, - quanta bondade há na astúcia. Eu podia imaginar que alguém que tivesse de esconder algo de precioso e de vulnerável rolasse pela vida grosseiro e redondo como uma verde e velha pipa de vinho, de pesados arcos: a subtileza do seu pudor assim o quer. Para um homem dotado de um profundo pudor, os destinos e as decisões delicadas escolhem caminhos por onde poucos transitaram e de cuja existência nem os seus mais íntimos confidentes devem ter conhecimento: escondem-se deles tanto o seu perigo de vida como a sua reconquistada segurança vital. Um homem assim escondido que, por instinto, precisa da palavra para se calar e silenciar, que é inesgotável nos meios de velar o seu pensamento, quer e favorece que uma sua máscara o substitua no coração e no espírito dos seus amigos; admitindo, contudo, que o não queira, aperceber-se-á um dia de que, apesar de tudo, só se conhece dele uma máscara, - e que é bom que assim seja. Todo espírito profundo necessita de uma máscara: mais ainda, em redor de todo espírito profundo cresce necessariamente uma máscara, graças à interpretação sempre falsa, quer dizer, superficial, de cada palavra, de cada passo, de cada sinal de vida que ele dá (Nietzsche, Para além de bem e mal. Lisboa: Guimârâes, 1987, § 40, p. 55-56).
5. E a questão que se me impõe violentamente, agora, é: terá Losurdo retirado, enfim, a máscara de Nietzsche?
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
sexta-feira, 26 de novembro de 2010
Karl Jaspers à luz de Domenico Losurdo - ainda sobre Nietzsche
1. Em 1886, Nietzsche publicava Para além de bem e mal. A minha edição é lisboeta, de 1987. Na contra-capa, branca, consta um citado atribuído a Karl Jaspers: "é possível encontrar em Nietzsche, em cada julgamento o seu oposto. Dir-se-ia que tinha duas opiniões sobre tudo. Por isso se podem invocar passagens de Nietzsche em apoio de idéias aparentemente o mais inconciliável. A maioria dos partidos abrigava-se por detrás da sua autoridade: ateus e crentes, sábios metódicos e sonhadores, homens políticos e apolíticos, espíritos livres e fanáticos".
2. Talvez se tenha descoberto a chave para esse fenômeno - ao menos nos termos em que Domenico Losurdo afirma, Nietzsche possuía dois discursos, um, para a classe dominante, outro, para a classe dominada, e, não, não estou "interpretando" Losurdo, estou, meramente, transcrevendo-o, na prática, literalmente: "é necessário chegar à plena consciência de que um é o discurso destinado às classes dominantes e outro o que deve ser dirigido às classes subalternas: 'É preciso distinguir rigorosamente entre A e B' (XIII, 448)" (Domenico Losurdo, Nietzsche, o rebelde aristocrata, Revan, p. 449).
3. Talvez agora de possa levar um tanto mais a sério o fato de que os discursos têm sentido relativos não apenas a seu autor, mas aos destinatários, aos referenciais a que se destinam - talvez, até, a história da recepção "metafórica" de Nietzsche no século XX possa ser explicada justamente pela cada vez mais negligente desatenção a esse princípio básico, mormente entre filósofos e teólogos - os discursos, se fossem gente, poderiam dizer toda a sua potência polissêmica, que, na verdade, não passa da atualização dos possíveis leitores potenciais; todavia, são "obra", são registro de uma intencionalidade situada e historicamente dirigida, de modo que é aí, e só aí, que se pode pretender instalar o princípio de inteligência desse discurso. Naturalmente, para quem ainda acredita nisso...
4. Uma última observação. Começava a duvidar de que Losurdo pudesse ter lido o mesmo Nietzche que eu - sim, reconheço, algo presunoso de minha parte, mas, ainda assim, metodologicamente prudente. Todavia, insisti em retornar a uma das últimas obras de Nietzsche, justamente aquela a que me refiro aqui - Para além do bem e mal. Se havia dúvida, não há mais. O leitor ou a leitora, desconfiados como eu, poderiam gastar meia hora a ler o capítulo nono - O que é Aristocrático? Pronto, todas as dúvidas se dissipam.
5. Nietzsche parece ser um último representante daquela espécie de homem aristocrático, logo, insensível, de coração bruto, não quero dizer "mau", quero dizer, "de pedra", não tocado pelos valores a duras penas construídos, sim, pelos "escravos". Nesse capítulo, Nietzsche justamente fala dessas duas únicas morais que há - a dos aristocratas, soberanos, senhores, dominantes, e a dos escravos, da plebe, dos dominados. E aqui ele encara a alma da Natureza em toda a sua brutalidade e insensibilidade - com a placidez de quem tem consciência disso: "a 'exploração' não faz parte de uma sociedade corrupta ou imperfeita e primitiva: petence à essência do que é vivo como função orgânica fundamental, é uma conseqüência da verdadeira vontade de poder, a qual é justamente a vontade da vida - Admito que, como teoria, isto seja uma novidade - como realidade é o facto primordial de toda a história: sejamos pois honestos para connosco próprios até este ponto! -" (Nietzsche, Para além de bem e mal, Lisboa: Guimarães, 1987, p. 198).
6. Esse vínculo programático entre a exploração do outro, a exploração do senhor sobre o servo, do dominador sobre o dominado, a uma função fundamental da vida, a um predicado orgânico, remete-me, com tremor, a um aforismo que, até aqui, muito apreciei, de A Gaia Ciência - e que, agora, tremo de ter errado o real sentido da intencionalidade aristocrática que o animava, e que eu lia com o "espírito de escravo" que me anima. Ei-lo: "- A consciência. - A consciência é a última fase da evolução do sistema orgânico, por conseqüência também aquilo que há de menos acabado e de menos forte neste sistema" (Nietzsche, A Gaia ciência - Livro Primeiro, 11, Lisboa: Guimarães, 1996, p. 47).
7. Não posso condenar meu filósofo preferido. Só posso me perguntar se essas seriam suas reflexões - de resto, no mínimo inquietantes, porque tocam as questões fundamentais da Filosofia, diante das quais todo o resto é espuma -, se ele estivesse do mesmo lado que eu, se fosse um legítimo representante da "tradição dos escravos", daqueles que se recusam a aceitar o destino natural, que têm a ousadia de pensar que, contra todas as aparêcias, contra toda a história real dos homens e das mulheres, diante de meus olhos, diante da minha face, diante de mim, todos os homens me são iguais - e que a desiguladade não constitui, para essa hmanidade, um destino, mas uma construção do resíduo de operação natural que permanece entre nós. Será apenas quando sairmos definitivamente da Natureza que poderemos, afinal, desvencilharmo-nos da lei da Natureza, segundo a qual os fortes dominam os fracos. E, no entanto, não é justamente hoje o dia em que a moda é o retorno à casa Natureza?, o abraço civilizatório ao mundo natural?, o cântico reverente e devoto à Ecologia? O Capitalismo, meus amigos, está a enamorar-se da Ecologia - Deus e o Diabo chegarão a fazer um pacto de domínio? Estamos à beira de um precipício - e queremos avançar ainda mais rápido para dentro dele...
8. Cuida-me parar de ler por hoje. Corro o risco de eu mesmo sair a abraçar cavalos... Deixa-me, então, ir atrás do que Nietzsche não teve: uma Bel a quebrantar-lhe a dureza do coração...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
domingo, 25 de abril de 2010
Da virada "iluminista" de Nietzsche
1. Ainda não posso falar dela. Losurdo ainda não a apresentou. Todavia, depois de 190 páginas de descrição exaustiva, carta a carta, caderno de preparação a caderno de preparação, livro a livro, do "jovem" Nietzsche - a rigor, quando ele pouco mais era do que um "estafeta" de luxo de Wagner, de modo que reproduzia muito do que o músico alemão "pensava" e dizia -, finalmente Losurdo deixa escapar uma já próxima "virada 'iluminista'" do filólogo-filósofo. Como, à época, a Alemanha está dividida basicamente entre dois "partidos" - democráticos, "otimistas", iluministas, moderistas, de um lado, e "trágicos", aristocráticos e contra-iluministas de outro, e uma vez que Nietzsche está até o pescoço enfiado neste último grupo, a distância dessa reconstrução e o Nietzsche que eu julgava conhecer dos livros que li e leio estava me surpreendendo e enlouquecendo. Agora, contudo, Losurdo antecipa a "chave" do enigma - Nietzsche experimentará uma virada "iluminista" - e é justamente essa virada iluminista que eu reconheço no filósofo que admiro, conquanto ele jamais - arrisco - abandonará a sua índole aristocrática e anti-democrática. Mas isso eu tolero...
2. Se você ainda não comprou Nietzsche, o Aristocrata rebelede, de Losurdo (Editora Revan), recomendo que o faça urgentemente.
OVALDO LUIZ RIBEIRO
sexta-feira, 5 de novembro de 2010
Transcrição das p. 346 e 347 de Nietzsche, o rebelde aristocrata, de Domenico Losurdo
1. Tudo o que Domenico Losurdo escreveu até a p. 347 de sua monumental biografia intelectual de Nietzsche está resumido didaticamente nas p. 346 e 347 - com primor. Vou fazer um favor ao público leitor, e transcrever as duas páginas, metade da 346 e a 347 inteira. Nelas, Losurdo descreve as quatro etapas pelas quais julga ter Nietzsche passado e, de quebra, ainda delineia quem era o Nietzsche de cada uma dessas fases. Um brinde ao conhecimento histórico do filósofo.
346 (A) Podemos agora dar uma rápida olhada no percurso realizado pelo filósofo. Nós o vimos falar de três etapas na sua evolução, a 'metafísica', a 'iluminista' e a 'imoralista'. Na realidade, no que diz respeito à primeira etapa, convém fazer uma distinção ulterior. Aproveitando e radicalizando a lição de Burke e do romantismo alemão empenhado na crítica da revolução, O Nascimento da tragédia denuncia os efeitos devastadores da hybris da razão, mas identificando o seu início já em terra grega. É verdade, esse tema continua a
deixar vestígios vistosos em todos os escritos que precedem à virada 'iluminista'; nesse sentido, Nietzsche tem razão ao falar de uma fase 'metafísica' no seu conjunto. No entanto, por outro lado, é preciso não perder de vista as novidades importantes que intervêm já com a segunda e a terceira Inatuais. No plano mais exatamente filosófico, a crítica da visão meramente antiga da história é a crítica também da plataforma ideológica ao modo de Burke, incapaz de fundamentar e estimular a ação contra-revolucionária que se impõe e da qual o 'homem de Schopenhauer', ou seja, o 'rebelde solitário' se encarrega. No plano mais estritamente político, essa figura toma o lugar do membro da 'comunidade popular' celebrada nos anos de O Nascimento da tragédia.
347 (B) Com Humano, demasiado humano, vemos surgir um 'iluminismo' aristocrático que analisa impiedosamente as paixões, as ilusões, o fanatismo do movimento revolucionário e disseca no plano psicológico as palavras de ordem morais que ele agita. Enfim, a quarta e a última fase, que, no plano político, é sinônimo de 'radicalismo aristocrático' (...) e, no plano filosófico, de imoralismo, de afirmação da inocência do devir. O fio condutor, o elemento de continuidade é representado pela crítica, antes pela denúncia apaixonada da revolução e dos perigos mortais que ela faz pesar sobre a civilização.(aqui, permitam-me a digressão, é exatamente onde bifurcam nossos caminhos - Nietzsche vai para a "direita"m eu diria, para o partido aristocrático, ao passo que eu vou para a "esquerda", para o partido "popular", por assim dizer, mas, quem me conhece o sabe, sem os engajamentos partidários e, talvez, sequer as ações mínimas - apenas uma filosofia de gaveta e gabinete). O protagonista da luta assim evocada e auspiciada é, primeiro, o membro e o cantor da 'comunidade popular', que à hybris da razão e da revolução contrapõe o mito supra-histórico no qual se reconhece e com o qual se alimenta todo um povo, graças à visão trágica do mundo intimamente unido, não obstante a escravidão e a carga de sofrimentos que a civilização inevitavelmente comporta. Depois é a figura do 'rebelde slitário' que toma o lugar da anterior. Consciente de não poder mais apelar para uma 'comunidade popular' irremediavelmente desaparecida, ele agita, ao contrário, com gesto de desafio a sua solidão em contraposição à massificação produzida pela revolução e pela modernidade. Pretende mais do que nunca opor-se à revolução, mas com a consciência de que por ela deve saber aprender algo, a começar pela recusa a entregar-se de modo preguiçoso e inerte à tradição, para interromper a gradualidade do seu desenvolvimento com uma ação resoluta cheia de riscos e de dilemas morais. Segue-se a figura do 'iluminista' atristocrático que, tirando proveito também do 'iluminismo moral', zomba da pretensão da revolução de apelar para a razão e a justiça e sublinha, ao contrário, o que há aí de rude, de supersticioso, de intolerante, de fanático e de doentio. Intervém finalmente o aristocrata imoralista que, enquanto submete à suspeita e à dessacralização mais impiedosa os valores e os falsos ideais da revolução e da modernidade, ao mesmo tempo conserva fresco e intacto o seu fervor e o seu entusiasmo pelo novo que pretende realizar e que pretende realizar não mais como 'rebelde solitário', mas, como logo veremos, de modo organizado, apoiando-se no 'partido da vida' ou no 'novo partido da vida', a fundar.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
terça-feira, 14 de dezembro de 2010
O Nietzsche, de Losurdo, e Morin - a semelhança dos discursos não os faz equivalentes.
1. Tenho gasto parte dos últiomos meses numa leitura lenta, em fogo brando, reflexiva ao extremo, da obra-prima de Domenico Losurdo, Nietzsche, o rebelde aristocrata, e, ao mesmo tempo, tenho dedicado meus últimos seis anos a ler Edgar Morin. Estava agora há pouco lendo uma obra de Morin, Breve História de la Barbarie en Occidente, e deparei-me com o mesmo discurso de Nietzsche a respeito da relação entre civilização e barbárie. Mas é necessário que me explique.
2. Nieztsche afirmava que a violência da civilização, a escravidão, a distinção de classes, os benefícios das altas classes em detrimento das classes inferiores, eram necessários, inexoravelmente imprescindíveis, porque eram os meios pelos quais a vida produzia os gênios, fermentava a cultura, a arte - uma orgia necessária de morte, aos milhões, para a possibilidade de emergência dos quase-divinos, dos semi-deuses - da aristocracia. Daí a sua ira profunda contra a religião judaico-cristã, porque, reconhecia, tinha sido ela uma das forças motrizes do espírito revolucionário e democrático, que, nos termos do raciocínio do filósofo, constituíam prejuízo severo e incorrigível à Civilização, porque igualava as pessoas por baixo, impedindo, pela banalização da plebe - da "chandala", como ele dizia -, pela contaminação não-higiênica, acrescentava, o surgimento da genialidade, da alta cultura, da arte refinada, a cujo fenômeno se resume a função civilizatótria.
3. Pois bem. Morin escreve umas 40 páginas sobre a barbárie do Ocidente e no mundo de modo geral. Morin não é maniqueísta, longe disso. Seu pensamento caminha pela consideração, sempre, dos dois lados da mesma moeda, o lado positivo e o lado negativo. Sendo assim, Morin descreve uma onda de barbárie milenar que, no seu rastro, deixa, de um lado, destruição e, no outro, cultura e arte. Nos termos em que Morin descreve o processo, o florescimento da cultura e da arte, propiciados pela barbárie, se dá por conta dos encontros que a barbárie força entre os povos, pela fomentação de mistiçagens eventualmente não intencionais, mas que, por força da ecologia das ações, se estabelecem. A Espanha, ele dirá, por força de sua barbárie civilizatória do século XV e XVI, produzirá, todavia, Lope de Vega, Calderón, Góngora... Em resumo: a barbárie, a violência, a destruição, carregam consigo forças de civilização, de cltura, de arte.
4. O que Nietzsche diz em chave filosófica Morin o diz em chave histórica? Sim e não. É verdade que os dois estão olhando a História e vendo o mesmo fenômeno - a história humana não é a história do bom ou do mau, mas a históia do bom e do mau juntos, articulados, de modo que, do bom sai o mau e, do mau, o bom. A cultura e a arte não são fenômenos absolutamente separados da marcha bárbara da história - são-lhe intrínsecas. Nisso, vêm a mesma coisa.
5. Mas é aí que cessa a equivalência dos discursos. Segundo Losurdo, Nietzsche faz a denúncia de que o custo da civilização é a barbárie, a escravidão e a submissão da plebe às classes dominantes, porque tem por estratégia neutralizar o discurso revolucioário de que as classes dominadas devem ter condições de vida caracterizadas pela liberdade, pela igualdade e pela fraternidade. O que Nieztsche desejaria é jogar água na fogueira revolucionária: para quê a revolução, se o que ela vai gerar é o fim da civilização, se aos homens menores está reservado o destino de servirem de adubo para que nasçam as grandes árvores civilizatórias? Ou seja: Nietzscje pretenderia desmistificar a realidade, para, de modo, a meu ver, cínico, revelar a nudez cruel da vida, razão profunda, ela mesma, da situação necessária da escravidão e da pobreza para o bem das classes superiores.
6. Morin, não. Morin é "revolucionário". "Haveria de se sublinhar a ambivalência, a complexidade do que é barbárie, do que é ciilização, por certo não para justificar os atos de barbárie, mas para os compreendermos melhor e assim evitar que nos posuam cegamente" (Morin, Breve História de la Barbarie en Occidente, p. 39). Isso define a diferença. Morin é Marx. Não é Nieztsche.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
quinta-feira, 23 de junho de 2011
(Duas) epígrafes de Domenico Losurdo (Nietzsche, o rebelde aristocrata)
1. As magistrais, as verdadeiramente extraordinariamente bem escritas 1.200 páginas de Nietzsche, o rebelde aristocrata, de Losurdo, abrem-se com cinco epígrafes - as últimas três das quais do próprio Nietzsche. Interessam-me, aqui, as duas primeiras. Você só as capta em toda a sua capacidade de síntese quando termina a jornada de 1.200 dias...
2. A primeira, de (Kurt) Tucholsky: "quem não o pode reivindicar? Dize-me apenas de que precisas e te encontrarei uma citação de Nietzsche [...] Pela Alemanha e contra a Alemanha, pela paz e contra a paz, pela literatutra e contra a literatura" (Dedicatória de Nietzsche, o rebelde aristocrata).
3. Losurdo deixará muito clara a razão dessa possibilidade de flagrar Nietzsche na defesa ou no ataque de qualquer ideia. E a razão é tão simples, que constrange: Nietzsche é um homem engajado, um homem político, de posição dogmática e inflexível. Toda e qualquer tema que vá de encontro a si, com esse tema ele comunga, ele o defende, elogia, louva, escreve-lhe poemas em Zaratustra. Todavia, se um tema vai de encontro ao que ele ama e crê, então, meus amigos, contra isso ele levantará bandeiras, trincheiras, evocará a peste, disso debochará, isso ele reduzirá a nada. Nietzsche é assim - parcialíssimo. Um radical da parcialidade...
4. Por isso louvará a Alemanha - aquela aristocrata. Mas há de desancá-la, quando enamorar-se do liberalismo, do socialismo, da democracia. Por isso ele amará a guerra - quando ela puser no seu lugar a plebe e a chandala. Mas a odiará, quando pôr em covas a fina-flor da nobreza mundial. Por isso ele elogiará os grandes poetas, se são, também, aristocratas e insensíveis, se não lhes palpita o coração de gelo. Mas tratará como degenerados e afeminados os poetas da compaixão e da justiça, essa modernidade mórbida, isto é, igualitária. Nietzsche é assim - seu espelho é a crueldade e a insensibilidade eugênico-escravagista: todo o resto é deformidade... Ela ama a Humanidade - formigueiro humano, curral de bestas sob o carro da Civilização.
5. A segunda epígrafe, formidável, de Pascal: "todo autor tem um sentido no qual todas as contradições entram em acordo, senão não há nenhum sentido [...] Por isso é preciso procurar um que concilie todas as contradições" (idem). Mais uma vez, Losurdo faz juz à epígrafe que elege, e encontrará esse ponto de conciliação numa sempiterna posição político aristrocrática do filósofo, desde os tempos de O Nascimento da Tragédia até os dias de véspera do fim de sua vida consciente.
6. Losurdo desenhará letra a letra, traço a traço, esse perfil político inamovível. É verdade que o século XX invertoeu esse perfil e fez de Nietzsche o campeão dos homens autônomos (o que é verdade apenas para os nobres, mas é falso para todos os demais!). Não é a arte, a música, a filosofia, a filologia, o centro nervoso, o eixo axial da obra e da vida do profeta-poeta de Zaratustra - é a Política, conforme ele mesmo confessa, nas epígrafes restantes de Losurdo:
A política é agora o órgão de pensamento em sua totalidade.
Menos que nunca podemos ver em Platão só um artista [...] Erramos quando consideramos Platão um representante do gênero artístico grego: enquanto essa capacidade foi uma das mais comuns, aquela espeficamente platônica, que é dialético-política, foi algo único.
Não se poderia cometer erro maior do que supor que só a arte nos interessa: como se ela devesse equivaler a um fármaco ou um narcótico, com o qual se pudesse eliminar de si todas as outras misérias da existência.
7. Das duas uma: ou o século XX não aprendeu a ler, ou fez questão de desaprender - e a fuga da História pela porta das metáforas é uma boa forma de mentir para si... mas não apenas para si...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO