A respeito da
recensão intitulada “A linguagem do império e a arte da evasiva de Domenico
Losurdo”, por Daniel Golovaty Cursino, publicada pela revista Fevereiro (site http://www.revistafevereiro.com/pag.php?r=05&t=09)
João Carlos Graça
“Se algo salta aos olhos”,
quando se lê a recensão de Daniel Golovaty Cursino ao livro Il linguaggio dell’Impero - Lessico dell’ideologia
americana, de Domenico Losurdo (Editori Laterza, Roma-Bari, 2007), é a
enorme confusão mental do autor e a sua tendência para a misturada incoerente
de verdades e semiverdades com falsidades plenas… isso, evidentemente, para
além da sua enorme má vontade para com a obra recenseada. Sem qualquer
pretensão de exaustividade, procuremos ainda assim pôr alguns pontos num mínimo
de is. Tomemos, a título de exemplo, o seguinte naco de prosa:
“Ora, se algo salta aos olhos é que a
campanha militar estadunidense no Iraque não segue claramente uma lógica
colonialista. E, da mesma forma, é preciso muita cegueira ideológica para
caracterizar a violência sectária que explodiu naquele país após a queda de
Sadam Hussein como sendo típica de movimentos de libertação nacional. Tampouco
o conflito israelense‐palestino pode ser equacionado no esquema clássico do
colonialismo. Se é verdade que Israel expande os assentamentos judaicos na
Cisjordânia palestina e, portanto, coloniza, também o é que não o faz no sentido
do colonialismo histórico, isto é, como meio de dominar e explorar economicamente
as populações autóctones (o que, diga‐se, em nada alivia a vida dos palestinos)”.
Traduzamos agora estas
alegorias poéticas para linguagem mais prosaica. Quem negará que a violência no
Iraque pós-Saddam é uma violência em grande medida sectária? Eu nego? Losurdo
nega? Alguém de bom senso acaso nega? Claro que não. Nada a opor a Cursino
quanto a isso, exceto que… exceto que, precisamente, muita da tal violência
sectária é ativamente apoiada e promovida pelos próprios serviços de counter-insurgency da raça senhorial,
isto é, dos ocupantes ianques (de forma direta através das suas forças armadas
“regulares”, ou, como é sabido, mais frequentemente através de outsourcing para contractors). A verdade é que onde antes havia uma civilização, um
país, um Estado — desenhado, é verdade, a régua e esquadro pelo colonialismo
europeu, mas que depois adquirira a independência e, melhor ou pior, forjara o
seu sentimento coletivo de pertença e o correspondente patriotismo — há agora,
no rasto dos feitos do “líder do mundo livre”, uma barbárie selvática de
segmentação grupal pós-moderna, seguindo linhas religiosas, étnicas e/ou
outras.
Deixemos pois de lado, se se
quiser, as centenas de milhar, aliás os milhões de mortos causados seja pela
“segunda” guerra do Golfo, seja pela “primeira” guerra, seja ainda pelo período
intermédio do comparativamente “suave” embargo económico. Deixemos de lado a
gritante violação, pelos EUA, da Carta das Nações e de tudo o resto que, mais
ou menos remotamente, possa ser considerado aparentado a um “direito
internacional”. Deixemos ainda de lado a impostura, todavia denunciada ex post facto para além de qualquer
dúvida razoável, das pretensas ligações de Saddam à Al-Qaeda, das fantasmáticas
“armas de destruição maciça” do regime Baathista iraquiano, etc. — deixemos de
lado, de preferência, todas essas e todas as demais patacoadas do incessante
matraquear da Propaganda Fide do
credo religioso “norte-americanista”. Permanece, ainda assim, o facto
fundamental da destruição de um Estado, duma civilização (material e, bem
entendido, “espiritual”, ou “cultural”), por outro Estado. Ou seja, o gritante análogo,
nas relações entre estados, a um homicídio nas relações entre pessoas.
Relembrar isso é sinal de
“antiamericanismo”? Bom, nesse caso então, lamento dizê-lo, mas… count me in. Tem de ser, não é? Factos
são factos. Houve um homicídio na nossa rua, um vizinho grande, forte e
poderoso assassinou à vista de toda a gente um outro vizinho mais pequeno, mais
pobre e mais fraco. Recordar isso é ser “anti” bom senhor? Cursino parece
pensar que sim. Bem, e sinceramente, que se lhe há-de fazer? Talvez seja
realmente melhor seguir o caminho, desviar o olhar e esquecer… Não ao homicídio,
entendamo-nos. Mas a este género de reação face a ele.
Já quanto ao colonialismo
que está subjacente ao estado de Israel, ah, bom, por uma questão geral de
precisão, entendamo-nos e procuremos esclarecer onde Cursino sobretudo obscureceu.
Sempre houve, ao contrário do que ele parece assumir, um colonialismo de
simples ocupação, extermínio e “limpeza” dos nativos, ao lado do mais
sofisticado colonialismo de submissão/escravização. Ninguém de bom senso, mais
uma vez, negará isso. Ou que Israel corresponde sobretudo ao primeiro modelo,
não ao segundo… “o que, diga‐se, em nada alivia a vida dos palestinos”. Oh brother, como é bom verificar que Cursino
consegue por vezes, quando se decide a ser intelectualmente honesto, acertar na
mouche!
Isso, porém, está
infelizmente algo longe de corresponder à mainstream
da sua escrita. É o que acontece quando, por exemplo, perora contra Losurdo nos
seguintes termos: “De fato, nosso autor parece incapaz de compreender que, por
exemplo, os terroristas islâmicos que promoveram o massacre de 11 de Setembro
não se pareciam em nada com jovens desesperados que lutavam pela libertação de
algum país ocupado… Em sua maioria, eram fanáticos oriundos de uma monarquia
corrupta que, apesar de ser uma aliada dos EUA, constitui – juntamente com o
regime islamofascista iraniano – o principal financiador do extremismo islâmico”.
Neste ponto, pace
Cursino, volta a ser impossível não ouvir os sinais de alarme. Ninguém negará,
eu não nego, Losurdo não nega, que o grupo de terroristas islâmicos diretamente
ligados ao 11 de Setembro tinha ramificações apontando para a tal potência
aliada dos EUA, a Arábia Saudita, a qual configura um caso de regime
fundamentalista, para além de patrimonialista, isto é, uma anomalia política de
quaisquer pontos de vista assumindo a modernidade e os seus valores. “Saudita”
é aliás, sublinhemo-lo, o nome duma dinastia. Chamar “Arábia Saudita” a um país
constitui mais ou menos o equivalente do que seria designar Portugal por “Ibéria
Brigantina” ou qualquer coisa no género. Algo a que, evidentemente, nem mesmo
os mais intransigentes dos monárquicos portugueses se atreveriam, mesmo muito
antes de 1910. Et pourtant…
Mas não é este, a dita “monarquia
corrupta” que é ainda assim o tal aliado dos EUA, o regime que alarma na
escrita de Cursino. A Arábia Saudita teve a ver com o 911? Sim, claro que teve.
Ninguém poderá dizer com segurança até onde exatamente terá chegado a
colaboração dos serviços secretos desta potência com a Al-Qaeda, e de ambos com
a CIA, na génese da catástrofe, mas não é esse, em todo o caso, aqui o assunto
principal. Cursino, de resto, tende a ignorar o regime (patrimonialista
decerto, mas fundamentalmente compliant
com os EUA) de Riad, aliás mais recentemente constituído ele mesmo em grande
“exportador de democracia” para Trípoli, Damasco e mais partes: seja por conta
própria, seja por encomenda do grande aliado/patrono de Washington.
O assunto principal está
obviamente alhures: em Teerão. E nesse ponto a coisa “fia mais fino”, como aqui
dizemos. É que o regime iraniano não só não é do mesmo tipo que o saudita, como
provém duma revolução que derrubou um congénere (embora algo mais aggiornato, reconheça-se) do regime de
Riad. Verdade seja dita, a república iraniana, embora assente no sufrágio
universal, no pluripartidarismo e em princípios genéricos de “estado de
direito”, comporta também uma inegável componente “fundamentalista”, ou seja,
não se trata dum estado plenamente secular, como eu preferiria, e
presumivelmente também Losurdo e Cursino. Mas mesmo nisso, alto lá em matéria
de conclusões, por favor. Quem são os norte-americanos, uma típica nação de
“peregrinos”, de resto tão habituados a referências rituais e soleníssimas aos Pilgrim Fathers tanto quanto aos Founding Fathers, para poderem fazer
reparos a quem quer que seja nessa matéria? E no resto do Ocidente… não é
verdade que, por exemplo, o monarca britânico ainda hoje é, por inerência
mesmo, o pontífice máximo da religião anglicana, aliás Church of England? E não é verdade também que, por reação
indiciadora duma “neurose coletiva”, sim, mas que talvez eu e Losurdo nos
sintamos inclinados a “compreender” ou a considerar com mais indulgência (nisso
provavelmente em posição a Cursino), a república da Irlanda é um estado onde o
catolicismo é reconhecido como religião oficial? E também, já agora, o Portugal
pré-74 era, de acordo mesmo com a letra da Constituição de 1933, um
estado-nação oficialmente católico.
Mais importante, todavia, do
que estes (presumíveis) resquícios de religiosidade, em sentido estrito,
nalguns casos associados ao político, são as tintas de religiosidade, em
sentido amplo, de que o exercício da política se reveste. E quanto a isso, ou
seja, em matéria de “ressurgência do teológico-político”, parece-me
sinceramente difícil encontrar caso mais patológico do que o da nação
“excecional”, a nação “escolhida por Deus”… e toda a demais costumeira lengalenga.
Cursino não precisa de mais especificações acerca de quem tenho em mente, pois
não? A factualidade arruma-se por si própria, desde que estejamos dispostos a
considerá-la desprovidos de preconceitos, não é assim? Que legitimidade terão,
então, aqueles que passam o tempo (metaforicamente falando) “de cu para o ar”
virados para Filadélfia, para dizerem mal dos que passam o tempo “de cu para o
ar” virados para Meca? E seria assim tão radicalmente diferente, se estivessem antes
virados para Jerusalém? Ou se o ritual fosse antes simular dar cabeçadas numa
parede? Bom, neste ponto, já se vê, sai de imediato o reparo de que é feio
fazer chacota com as práticas religiosas dos demais. E eu próprio reconheço:
pois é, pois é… mas só com as de alguns? O “voltairianismo” é bom, sim, enquanto
retórica política, quando se trata de “eles”, mas já não quando se refere aos
“nossos”?
Segundo explica a autoridade
de Cursino, “a exemplo do que ocorre com o fenômeno do terrorismo, o ponto
problemático na conceituação losurdiana do fundamentalismo é que ela deixa
escapar a sua especificidade como resposta reativa, ao mesmo tempo arcaica e moderna, à própria modernidade democrática com
sua constitutiva separação das esferas do poder, do direito e do saber, operada
pela criação de um lugar essencialmente vazio para o exercício da autoridade política (C.
Lefort). Assim, a atual ressurgência do teológico‐político só pode ser adequadamente
compreendida, tanto em seu vigor quanto em seu perigo, como projeto político
cujo objetivo maior é justamente colmatar aquilo que a modernidade separou,
isto é, como uma revolta antidemocrática que, na ausência de projetos políticos
autenticamente emancipadores, se segue historicamente à falência dos
totalitarismos seculares”. Para além de Claude Lefort, esclareça-se que Daniel Cursino
podia evidentemente, quanto a este assunto, ter citado ou referido também
Edward Shils e Shmuel Eisenstadt, pelo menos, e com base em nomes que me
ocorrem de imediato enquanto precursores “sociológicos” ou fontes do filósofo
francês.
No meu entender, porém, o
problema neste ponto é que se trata de um argumento demasiado encostado ao
tropo sociológico de que a normalidade no desenvolvimento social (e
particularmente político) corresponderia a uma diferenciação crescente,
estando-se portanto perante anomalias, ou patologias, sempre que ocorresse um
sobreinvestimento no político. Esse argumento, infelizmente, pode em boa
verdade ser usado contra todas as formas políticas modernas, as quais tendem na
verdade a ficar investidas duma aura quase-religiosa, precisamente na medida em
que apelam a uma mobilização muitíssimo acrescida, por comparação com as formas
políticas arcaicas. Por outro lado, e contra o tropo da pretensa normalidade da
diferenciação crescente, convém igualmente recordar a noção de Ernest Gellner
apontando para a necessidade duma uniformização moral crescente quanto a alguns
aspetos da existência social, e como consequência direta da própria
modernização. Daí a normalidade do nacionalismo, por exemplo, com a invenção de
antepassados míticos comuns e seus correlatos, o que seria de algum modo um
processo imposto pela “intensificação semântica” da vida nas sociedades modernas:
a necessidade de falarmos todos a mesma língua, de lermos os mesmos textos
“formadores”, de nos imaginarmos descendentes comuns do mesmo grupo “étnico”
originário e por aí fora.
Tudo isto corresponde
entretanto, sublinhemo-lo, sobretudo a especulações e conjeturas. Tenho a
certeza de que poderemos encontrar sociologias, ou filosofias, capazes de justificar
a “normalidade”, ou noutros casos a “patologia”, de quase todas as formas
políticas que têm passado por nós ao longo dos tempos. Tudo depende, é claro,
das preferências do comentador, dado o caráter da elucubração em causa,
assumidamente muito longe de poder ela própria ser considerada wertfreie… Em todo o caso, e porque toda
esta conversa vem de novo a desembocar no sempiterno e estafadíssimo tema dos
“totalitarismos”, parece-me largamente recomendável que Cursino leia o texto, a
todos os títulos notável, que Losurdo dedica precisamente a este tema, aqui: http://www.pssp.org/bbs/data/document/1/Losurdo___Critique_of_Totalitarianism_(2004).pdf
Não vou perder muito tempo
com tiradas como aquela em que Cursino garante, por exemplo, que “Em seu livro,
Losurdo, claramente um adepto da weltanschaung anti‐imperialista, constitui uma exceção à regra, visto que não adere
propriamente ao antiamericanismo. Mas, se não o faz, é apenas ao preço de, bem
ao velho estilo stalinista, apagar da história tudo aquilo que contraria as
suas teses.” Ocorre-me de imediato, quanto este tema recorrente do
“estalinismo”, recordar o papel sinistro que, precisamente, o
“anti-estalinismo” tem desempenhado, e continua em pleno a desempenhar, no
desarme/cooptação/castração/reprocessamento ideológico da chamada “esquerda
ocidental”. Quanto a isso, creio que faria bem a Cursino meditar por exemplo no
que James Petras escreveu em texto de 4 de Julho, dia da independência do
julgamento, do ano passado. Aqui: http://www.globalresearch.ca/the-western-welfare-state-its-rise-and-demise-and-the-soviet-bloc. Mas, para falar com toda a franqueza, e dado o
tom de baixo nível, mesmo algo reles, da escrita de Cursino neste ponto particular
(abandonando a argumentação lógica, apelando ao cliché fácil e refugiando-se na
simples injúria), também me ocorrem outras possíveis réplicas,
relativas a “ismos”. Uma delas, que me atrevo a deixar como sugestão literária,
corresponde ao que o poeta português Jorge de Sena escreveu no poema “Deixem-se
de fingir…” (em 40 Anos de Servidão,
Lisboa, Edições 70, 1989), lamentando-se e protestando contra aqueles para quem
“O único ismo em consonância com os
arrotos/ de bem comidos, e os rosnidos de instalados/ naquilo que criticam
disfarçando-se,/ é o relismo - de reles. Nada mais”. (Acesso também
aqui: http://cravodeabril.blogspot.pt/2009/09/poema_24.html)
Em matéria de
racismo e de posição dos judeus nesse tipo de mapeamentos mentais, Cursino
concorda globalmente com Losurdo: “Foi a necessidade dos “arianos” europeus de
diferenciar‐se racialmente, em primeiro lugar, dos povos colonias, externos ao
Ocidente, que produziu neles a necessidade análoga de diferenciar‐se, agora
também em termos raciais, dos judeus, um povo que há muito tempo havia chegado
ao Ocidente, mas que permaneceria essencialmente “oriental”. Assim, o
antissemitismo racial não apenas opera uma ruptura com a judeofobia cristã, mas
também termina com um nada surpreendente ajuste de contas com o próprio
cristianismo, que passaria a ser cada vez mais referido pelos antissemitas
europeus (sobretudo alemães) como uma enfermidade judaica da qual tornava‐se
imperioso tomar a devida distância”.
Na verdade, quanto a racismo
muito mais poderia evidentemente dizer-se, desde logo destacando que a
categoria central pode realmente ser a de “arianos”, mais frequentemente
associada ao nazismo, é verdade, mas também ao conceito de “indo-europeus”, o
qual obteve uma consagração científica (linguística) indisputável até aos
nossos dias, sendo William Jones um autor cujo legado merece sem dúvida todo o
respeito, independentemente das associações imperiais/coloniais a que a própria
produção da categoria veio ligada. Apelar à categoria de “arianos” pode também
corresponder, e de facto correspondeu, à démarche central do Gandhi de
determinado período, o qual pretendia que os “irmãos arianos” britânicos reconhecessem
nos indianos parentes étnicos, ainda que afastados e de epiderme escura,
enquanto outros povos, como os zulus, seriam realmente merecedores de cláusulas
de exclusão, dada não a respectiva epiderme, mas presumivelmente o idioma.
(Ver, quanto a isto, o que Losurdo escreve acerca do tema da relatividade da
“não-violência” de Gandhi, no livro dedicado a esse tema: La non-violenza - Una storia fuori dal mito, Editori Laterza,
Roma-Bari, 2010). A categoria central da taxonomia racista pode, entretanto,
ser não a de “arianos”, meritória cientificamente malgré tout, apesar das desagradáveis ressonâncias potencialmente
“nazificantes”, mas por exemplo a de “caucasianos”, a qual se deve ao
naturalista Johann Friedrich Blumenbach,
de facto muito menos suscetível de ser repescada cientificamente (veja-se,
quanto a isso, entre todos o soberbo livro de Steven Jay Gould intitulado The Mismeasure of Man, W. W. Norton & Company, NY and London, 1981; tradução portuguesa A Falsa Medida do Homem, Lisboa, Círculo
de Leitores, 2004), mas ainda assim habitualmente considerada não “nazificante”,
portanto supostamente menos temível, e mesmo quase respeitável: a ponto de ser
usada de forma banal, e com aparente “neutralidade axiológica”, enquanto simples
categoria de polícia, na “grande democracia”… ao lado de categorias
contrastantes, tais como, entre outras, “africano”, “americano nativo” e
“latino”. Sendo a categoria de “latino” associada neste contexto, admitamo-lo,
a conotações decerto bem diversas das que Olavo Bilac teria em mente quando, no
famoso poema, se referia à língua portuguesa como “última flor do Lácio,
inculta e bela”…
Declarando depois concordar
globalmente com Losurdo quanto à distinção entre judeofobia e antissemitismo,
Cursino expressa todavia dúvidas quanto à categoria de “antijudaísmo”. Deixando
agora de lado inúmeros detalhes, destacam-se das objeções de Cursino ao
tratamento a que Losurdo procede: “a) a notória plasticidade do racismo antijudaico, haja vista que suas
vítimas são acusadas a um só tempo de serem banqueiros inescrupulosos e comunistas empedernidos; arraigados às suas
tradições e cosmopolitas desenraizados, etc.; b) o fato de
que o Holocausto judeu se deu em uma época em que não havia mais nada da tal
posição objetiva dos judeus na divisão social do trabalho; c) a estranha
“universalidade” deste racismo, explicitada no fato de que ele pode
verificar‐se nas mais diversas – e até mesmo opostas – correntes políticas”.
Perante isto, acrescento
agora eu, é difícil evitar a perplexidade. Ser acusado simultaneamente duma
coisa e do seu oposto é sinal, para Cursino, de “excecionalidade”? Que essas
acusações não correspondam, nem remotamente, aos factos, indicia
“excecionalidade”? Que haja pessoas, quanto a outros critérios muito diferentes
entre si, que sejam unânimes numa condenação, constitui segundo Cursino um
sintoma de “excecionalidade”? Parece-me, muito sinceramente, que o problema
principal está em Cursino e na sua assunção mais ou menos explícita da
centralidade, ou “axialidade”, da história judaica relativamente à história humana,
ou universal. Basta pensar, por exemplo, na Jugoslávia e em Milosevic, que em
1999 eram (abusivamente, falsamente, de forma descaradamente manipulativa)
acusados pela NATO de expulsarem os kosovares de etnia albanesa do Kosovo, mas
também, e em simultâneo (talvez por reemergência circunstancial de um meme mais
antigo, relativo à Guerra Fria), de os impedirem de sair, para ver que a alínea
a) de Cursino cai de imediato por terra. Relativamente à alínea b), é ver o
quanto as acusações contra o próprio Milosevic permaneceram por provar até ao
fim, tendo assim o “tribunal” da Haia (que o mandara pôr a ferros no preciso
momento em que as bombas “humanitárias” caíam em Belgrado!) de o manter preso e
deitar fora a chave, empastelando indefinidamente o julgamento e deixando que
acontecesse o oops!, “acidente” oh-so-convenient da sua estranha
morte sob custódia, por deficiência de tratamento médico… E entretanto, na
Europa ocidental, gente de direita, gente de centro e gente de “esquerda” lá continuava,
unida na irracional sanha comum contra a Jugoslávia, contra os sérvios, contra
Milosevic… Mentiras bastante absurdas, já pode Cursino ver, podem ser mantidas
contra quase toda a gente, todas as etnias e todos os demais grupos, todos os
indivíduos, tudo dependendo da conveniência majestática, imperial ou outra, e
da subsequente propaganda: a história judaica, por triste, injusta ou absurda
que seja, não constitui quanto a isso uma exceção ou um acontecimento “axial”;
é um caso mais, entre tantos outros casos.
Cursino, porém,
não está disposto a essa admissão. Para ele, “Holocausto” é coisa para escrever
uma e outra vez, de preferência sempre com maiúsculas, a bold e em
caracteres 14. E é precisamente essa assunção da centralidade do Holocausto, e
da “axialidade” e “excecionalidade” da história judaica, que torna difícil
manter um diálogo equilibrado com o historiador da Fevereiro. Segundo este opina, a história do século XX obriga-nos
“a uma revisão crítica (a qual só pode ser feita por meio da própria razão) de
toda a nossa tradição, tarefa que, como se sabe, foi empreendida por autores
como Adorno e Horkheimer. É claro que Losurdo está correto ao afirmar que seria
anti‐histórico projetarmos nossa sensibilidade contemporânea sobre autores que
viveram em séculos passados. Entretanto, desta vez de um modo bem afeito ao
pensamento histórico de Marx (“a anatomia do homem é a chave da anatomia do
macaco”), deveríamos afirmar que o inverso também é verdadeiro, isto é, depois de Auschwitz, certos
textos já não podem mais ser lidos como se nada tivesse passado. A catástrofe
do século XX cria retroativamente os seus precursores”.
Traduzindo de
novo de poesia para linguagem prosaica: a “civilização ocidental”, o tal
suposto berço da racionalidade, deve ainda assim manter-se sossegada e penitente,
piedosamente penitente, em relação ao “povo judaico”; e o recipiente
beneficiário dessa penitência deve, como é óbvio, ser o estado de Israel.
Cale-se, portanto, quem falar de Shoah
Business ou de Holocaust Industry.
Os que sugerirem que Israel capitaliza moralmente e manipula, embora com base
em sofrimentos muito reais, devem imediatamente silenciar-se, sob pena de ser
invocada contra eles não apenas a “autoridade” dos cultores da “excecionalidade”
judaica ou sionista (estritamente religiosos ou seculares, judeus ou cristãos,
isso pouco importa), mas também a de Adorno, a de Horkheimer, até mesmo agora a
de Marx…
E neste ponto,
desculpem lá, mas volto a sentir que é necessário intervir, para esclarecer um
certo número de pontos e acabar com todas estas imposturas tolas ou, pardon
my French, com todas estas “macacadas”. Antes de mais, esclareça-se que
racionalidade é universalidade, não é “ocidentalismo”. Os cultores da
excecionalidade ocidental, que pretendem fazer da tal suposta “civilização
ocidental” o berço ou, pior ainda, o depositário perpétuo e exclusivo da
racionalidade, erram; e erram de forma muito grave e logo à partida. Depois, se
Cursino acha que algo no judeocídio intentado pelos nazis no século XX implica
uma reavaliação retrospetiva da dita “civilização ocidental”, pelo meu lado,
saiba que pode ficar à vontade. Penso é que deve procurar fazê-lo “por meio da própria
razão”, sim; e nunca contra esta. Mas tomemos um exemplo concreto, para tornar
mais claros os contornos desta questão. Algures nas suas Cartas Filosóficas, Voltaire fazia troça dos espíritos piedosos
cristãos (em concreto, Blaise Pascal) que, cavalgando a noção de
“excecionalismo” judeu e transmutando-a ele mesmos num pretenso
“excecionalismo” cristão, apelavam à noção duma intervenção direta, divina, na
história humana. Se a Assíria tinha destruído o estado judaico e séculos depois
a Pérsia tinha, por sua vez, destroçado o poder assírio, a que ficaria isso a
dever-se? Obviamente, a intervenção de Jeová, que assim exercia contra o estado
e contra o povo assírio a justíssima vindicta, de que aqueles se tinham tornado
imprescritivelmente merecedores, dados os execrandos pecados cometidos pelos
seus antepassados de várias gerações atrás…
Agora bem: o
recurso a este género de ironia “voltairiana” é legítimo, no exercício da razão
histórica? A resposta sugerida por Cursino é que não. Pelo menos, depois de Auschwitz
deixou, retroativamente, de ser legítimo. A minha resposta, pelo contrário, é
que continua a ser; e agora, talvez, mais do que nunca. A linha de oposição é
particularmente relevante, uma vez que é referida à pretensa “negação do
Holocausto” por parte do ex-primeiro-ministro iraniano Ahmadinejad, e ao seu
não reconhecimento do direito à existência do estado de Israel.
E quanto a isto,
de novo, por favor os pontos nos is. O que significa ser “negador do
Holocausto”? Trata-se de negar a factualidade do judeocídio intentado pelos
nazis? Trata-se de negar, por exemplo, que houve os tais célebres 6 milhões de
mortos? Já mesmo quanto a este aspeto, devo dizer, as razões da investigação
historiográfica devem na minha opinião sobrepor-se a tudo o mais. Suponha-se
que, com base em documentos irrefutáveis, se vinha a falar não de 6 milhões,
mas de 5, ou por oposição de 7? Configuraria isso uma “negação do Holocausto”?
E como medir a aceitabilidade, ou não, do mencionado “revisionismo”? A luz
amarela acende, “para baixo”, em 5.5, enquanto no caso de desvio “para cima”
aparece apenas em 7 milhões? Sendo a correção de sentido descendente, a 5 milhões
entra-se no vermelho, enquanto no caso ascendente isso ocorre apenas a 8? Quais
os limites do aceitável, em nome de quem ou de quê é este fixado, e por quem?
Com a luz amarela é-se expulso da universidade, quando se chega à luz vermelha
é-se posto a ferros?
Já se adivinha o
inferno em que se entra quando, na investigação, se abandona a norma de “a
verdade e nada mais do que a verdade”, optando-se por outras regras, de
natureza pia. O principal, porém, ainda não é isso. A questão está de facto,
antes de mais, na tal “centralidade” ou “axiologia” do dito Holocausto (com
maiúscula, claro), no caráter que, dum ponto de vista cosmogónico/escatológico
assumidamente judeocêntrico, o tal Holocausto teria enquanto refundação
absoluta, “momento zero”, atonement, Apocalipse
ou o que de aparentado se queira mais.
Ora bem, quanto a tal, Cursino está evidentemente do lado da obra pia, enquanto
Voltaire, Losurdo, Ahmadinejad e eu próprio estamos do lado da Razão. Com nuances, é evidente, adentro deste
“bando dos 4” que o meu atrevimento retórico se abalançou a compor. Losurdo,
talvez o mais indulgente do grupo face às pretensões de Cursino, ainda leva a
sua boa vontade até ao ponto de afirmar que se pode “dizer que, depois do
horror de Auschwitz, certos movimentos espirituais se tornaram intoleráveis; no
entanto, seria anti‐histórico projetar nossa sensibilidade hodierna diretamente
sobre textos de dois séculos atrás”. Isso, porém, não satisfaz Cursino. É
necessário reconhecimento sem ambiguidades da excecionalidade do “povo eleito”,
ou nada. Excomunhão, perda da cátedra, proibição de lecionar, censura, prisão:
eis os tormentos destinados àqueles que praticarem as ousadias do cepticismo e
do livre inquérito…
Assim, não
admira que Cursino se indigne contra Losurdo e os cuidados deste ao tratar dos
discursos de Ahmadinejad, contraponto o articulista da Fevereiro que “o antissemitismo vigente no mundo árabeislâmico está
longe, muito longe, de ser um fenômeno marginal. Trata‐se de uma região do
mundo em que os famigerados Protocolos dos Sábios de Sião são ensinados nas
escolas como verdadeiros documentos históricos e a autobiografia de Hitler é
permanentemente um best-seller. O Holocausto é apenas mais uma mentira da conspiração
judaica para dominar o mundo, perfidamente incutida nos povos ocidentais pelos mídia, que, é claro, são amplamente
dominados pelos judeus. Trata‐se aqui de uma loucura sancionada publicamente pelos
aparelhos ideológicos estatais, bem como por grande parte dos intelectuais e
dos mídia dos regimes árabes. Malgrado as
grandes diferenças, no que diz respeito ao ódio antijudaico, a única analogia
histórica possível neste contexto – no qual a destruição de Israel e o
extermínio de judeus são moralmente legitimados – é com a Alemanha dos anos
1930”.
E
de novo, face a esta salganhada, é difícil encontrar por onde começar. Antes de
mais, seria um completo absurdo os árabes serem antissemitas. É que, recordemo-lo,
eles também são semitas, não é assim, caro Cursino? Não vou aqui entrar nos
detalhes, por exemplo, da argumentação de Shlomo Sand (em The Invention of the Jewish People, Verso, London and NY, 2009), segundo
a qual os verdadeiros descendentes dos judeus da Antiguidade seriam os
palestinianos, dado que os judeus europeus, ocidentais ou orientais, sefarditas
ou Ashkenazy, proviriam de outros povos entretanto convertidos ao judaísmo, o
qual teria sido durante muito tempo uma realidade sobretudo religiosa e
praticante do proselitismo, não uma realidade étnica, inventada esta só no
século XIX pelo movimento sionista. Evidentemente, pode subscrever-se ou não as
teses de Sand, mas o importante é destacar que: a) ele retira da sua obra uma
opção clara pelo princípio de “um homem, um voto”, num estado único, secular,
não-étnico e fundado no jus solis, no
território de Israel/Palestina, o que me parece um desiderato político inatacável;
b) os adversários de Sand “descobriram a sua própria careca”, como aqui dizemos,
revelaram bem o seu íntimo racista, quando se obstinaram contra ele em
argumentos “genéticos” que decerto orgulhariam qualquer Galton, e talvez ainda seja
dizer pouco… (Quanto a este assunto, ver aqui, sff: http://en.wikipedia.org/wiki/The_Invention_of_the_Jewish_People).
Depois,
sinceramente, que coisa será essa de “mundo árabeislâmico”? Saberá Cursino, por
exemplo, que a maior parte dos muçulmanos
de todo o mundo está muito longe de ser composta por árabes? Que os maiores
estados de população predominantemente muçulmana, Indonésia, Paquistão, Bangladesh,
Irão, não são estados árabes? Que a
maior “nação muçulmana” do mundo, aliás, caso se tratasse dum estado-nação, seria
a minoria muçulmana que permaneceu no interior da União Indiana mesmo depois da
secessão do Paquistão e do Bangladesh? Recomendo a Cursino, portanto, um pouco
mais de prudência, de tento na língua e de rigor na elaboração concetual. Os muçulmanos de todo o mundo merecem-no
sem dúvida. Não só, ou não sobretudo, por serem muçulmanos; mas por se tratar
de seres humanos, claro. E também por isso ser verdade, o que não deveria ser
despiciendo…
Enfim, mesmo que
as tiradas cursinianas sobre o pretenso sucesso editorial dos Protocolos dos Sábios de Sião e da
biografia de Hitler no tal “mundo árabeislâmico” fossem verdadeiras, o que
evidentemente não é o caso, ainda
assim, em nome do rigor científico, Cursino deveria saber abster-se de concluir
que “a única analogia histórica possível neste contexto (…) é com a Alemanha
dos anos 1930”. Olhe que não, caro Cursino, olhe que não. Aliás, relembro
quanto a isto que, apesar de tanto ser possível morrer atacado por um
crocodilo, como atacado por um tubarão, um cientista que concluísse desse facto
que “a única analogia possível” para cada uma dessas espécies seria a outra,
designando ambas, por exemplo, pela categoria de “Leviatã” (quiçá “Leviatã
marítimo” para o tubarão, “Leviatã lacustre” para o crocodilo), seria, permito-me
dizê-lo, um mau cientista e um péssimo taxonomista. Na verdade, e como se sabe,
ou deve saber, o crocodilo (todos os crocodilos) está filogeneticamente muito
mais perto dos primatas e do homem do que do tubarão. A categoria de “Leviatã”
é, assim, um completo absurdo do ponto de vista da biologia; desculpável talvez
numa mente assustada, temerosa e propensa ao obscurantismo; completamente insuportável
da parte de quem se reclame da ciência, do rigor concetual e da verdade
factual.
Em toda esta
história, porém, não interessa tanto Ahmadinejad supostamente negando a
factualidade do “Holocausto” (isto é, do judeocídio intentado pelos nazis no
século XX), ou sequer a importância escatológica deste evento, mas sobretudo a
relação disso com as populações do Médio Oriente, em particular os
palestinianos. Em suma, trata-se, da parte de Ahmadinejad, de indagar: mesmo
que, por hipótese, tudo isso que “vocês ocidentais” contam seja verdadeiro; e
mesmo que, para vós, em virtude das vossas crenças religiosas (não apenas ou
não tanto o judaísmo, mas muito mais amplamente o “culto do Holocausto”
enquanto rito, mito e dogma da religião cívica do “Ocidente”), tudo isso seja
sacrossanto e “axiológico” — ainda assim, que diabos têm os palestinianos a ver
com toda essa história? Porquê, em nome de que praga, terão eles sido nomeados
enquanto pagadores da dívida que o Cosmos, ou o Ocidente, ou a Humanidade
teriam para com o “povo eleito”? Se o Ocidente acha que realmente deve algo a
“os judeus”, e se de facto pensa que as organizações sionistas são os
cobradores legítimos de tal dívida — por que não cederá o Ocidente algo do seu
território a “os judeus”, ou às organizações sionistas? Porque não lhes dará,
por exemplo, a Pomerânia? Ou a Silésia? Ou a Andaluzia? Ou a Califórnia setentrional?
Ou a meridional? Imagina-se aliás, quanto a isso, um fácil exercício mental de
comparação, remetendo para a “questão irlandesa”. Sem dúvida que se trata aqui
de um povo submetido a colonização por outro povo europeu, a qual em parte
resultou em escravização fáctica, em parte em extermínio, ou quase. Ainda
assim, se uma hipotética Organização Mundial Irlandesa, em nome dum putativo
passado céltico (real ou lendário, pouco importa) reclamasse a colonização em
massa da Galiza e/ou do norte de Portugal como via para a solução da “questão
irlandesa”... seria natural que nesse caso houvesse problemas, e problemas
mesmo muito sérios, com os “nativos” galegos ou minhotos, não?
E neste ponto,
caro Cursino, creio que chegamos de facto ao cerne da questão. Por verdadeiro
que tenha sido o judeocídio intentado pelos nazis, e antes dele verdadeiros
também os séculos e séculos de perseguições religiosas de que os judeus foram
vítimas na Europa — ainda assim, qual a legitimidade da pretensão de nomear os
palestinianos para “pagar as favas” de tudo isso? É ou não verdade que o estado
de Israel é um estado não dos nativos do seu território, dos seres humanos que
lá nasceram e lá vivem, mas um estado dos judeus de todo o mundo, aliás
da Volksgemeinschaft judaica? Se a Alemanha tem sido, por excelência, o
país de irrupção de conceções “comunitaristas” do social, como Cursino tende no
seu escrito a assumir (de resto, talvez demasiado apressadamente, mas não é
esse agora o assunto), então teremos de concluir que o problema fundamental com
o estado de Israel é tratar-se aqui de um estado, digamos, alemão, demasiado
alemão... Em que consiste, assim, o tal sacrilégio de se ser “contrário à
existência do estado de Israel”? Assumindo desde o princípio como moto o lema
de “uma terra sem povo para um povo sem terra”, o estado de Israel é ele mesmo,
sublinhemo-lo, um estado fundamentalmente “negacionista”. Está de facto assente:
não apenas a) no apagamento físico, na “limpeza” (expulsão ou extermínio) de
todo um povo de autóctones, de gente que teve o azar de estar lá antes, e que foi tratada como não gente quer pelas
autoridades coloniais britânicas que previamente administravam o território,
quer pelos colonos sionistas entretanto chegados à “terra prometida”, a tal
“terra sem povo”; mas, ainda mais b) no subsequente “apagamento da memória”, na
“limpeza” historiográfica que veio depois, a qual apenas vagamente evoca,
através da expressão aliás muito contestada de “Nakba”, todo esse dolorosíssimo “episódio” que a auto-celebração
colectiva de Israel tende compreensivelmente a atirar para debaixo do tapete,
ou pelo menos a envolver em neblina, reduzindo-a à vacuidade das alegorias
lendárias...
Bom, mas então,
replicarão alguns, pretender-se-á agora expulsar os colonos judeus e os seus
descendentes entretanto nascidos em Israel? E a resposta óbvia é: claro que
não! O desaparecimento da White South Africa não significou que os
brancos sul-africanos fossem deitados à água, pois não? Pois bem, no caso de
Israel, trata-se de reclamar que, no território da antiga Palestina britânica,
seja erigido um novo estado: secular, não-étnico, fundado no jus solis,
isto é, na cidadania plena de todos os aí nascidos e no princípio de “um homem,
um voto”, analogamente ao que se fez na outrora White South Africa,
passando esta então a “África do Sul”, simplesmente. Deveria ser simples e
tranquilo, não é? Bom, na verdade, realmente não é. Porquê? Pois bem, porque
isso significaria o desaparecimento de Israel qua Israel. Nesse caso,
deixaria de haver o “estado dos judeus”, o que corresponde à definição
quintessencial de Israel — o tal estado em que os judeus têm direito de
cidadania, se a requerem, sejam eles nascidos em Nova Iorque ou Riga, Buenos
Aires, Adis Abeba ou Vladivostok, isto é, tendo rigorosamente patavina a ver
com o território, mas essa cidadania continua entretanto a ser negada aos Untermenschen
nativos — para passar a existir um estado “normal” do ponto de vista da
modernidade. Cursino concordará com isso? Pois olhe que é melhor repensar e tomar
cuidado, sob pena de o “bando dos quatro” ter de passar a “bando dos cinco”...
Cursino alude
ainda, quanto a este tema, ao facto de ter havido uma tradição, por parte da
URSS e da generalidade dos PCs, de reconhecimento do problema judeu/sionista
enquanto reclamação anti-colonial legítima, o que constitui uma semi-verdade. Citando
Losurdo, escreve ele que “no sionismo encontra [o movimento comunista] a
exigência de um povo, tradicionalmente oprimido, de conseguir o reconhecimento
não só como conjunto de indivíduos, mas também como povo, como cultura, como
entidade metaindividual”. Por exemplo, na URSS de Stalin, sim, os judeus
conquistaram não apenas igualdade geral de direitos com os demais cidadãos, mas
também o reconhecimento duma região, na qual eram maioritários e que ficou
consagrada constitucionalmente como região judaica (o que não significa que
tivessem o direito de expulsar de lá os não-judeus, evidentemente). Isso,
porém, fez a URSS, num certo sentido, à custa de si mesma, o que é, por
princípio, obviamente inatacável enquanto prática. Outra coisa, bem diversa, é
o que fez o Império Britânico à custa de
outros, isto é, dos palestinianos. Por outro lado, também é verdade, sim,
que a URSS de Estaline favoreceu a própria criação do estado de Israel e o seu
reconhecimento logo de início pela ONU (alegando até alguns que “Estaline criou
Israel”; cf. relativamente a isto, Leonid Mlecin, Perché Stalin creò Israele, Sandro Teti Editore, Roma, 2010),
tendo-se as relações recíprocas estragado só mais tarde, no ano da “separação
das águas” de 1956, quando Israel foi decididamente cooptado pela “irmandade
ariana”, ou “caucasiana”, enquanto país de “ocidentais honorários”, alinhados
portanto no fundamental com a NATO e submetidos por isso à tutela dos EUA, etc.
(Quanto a este assunto, ver, de Luciano Canfora, 1956 L’anno spartiacque, Sellerio Editore, Palermo, 2008).
Tudo isso deve,
porém, ser considerado com muito mais cuidado, e havendo em linha de conta
vários outros fatores. Diversas componentes causais sem dúvida se entrecruzam
neste enredo. Não nego que o efeito moral do imediato pós-Auschwitz tenha
jogado algum peso na conduta soviética — para além, evidentemente, do fascínio
que os EUA tenham exercido também sobre o movimento sionista. Infelizmente, segundo
opina Losurdo citado por Cursino, a tal “exigência de reconhecimento” do
sionismo “é buscada às custas de outro povo, que tende a ser assemelhado a uma
tribo indígena, segundo o modelo estadunidense, naqueles anos confusos de
grande prestígio”. Neste ponto, porém, Cursino reage ultrajado: “A comparação
entre a colonização sionista e o Far West americano consiste em uma
falsificação grosseira. É verdade que Herzl olhava com simpatia para os EUA,
mas este nunca preconizou um extermínio de árabes, mas sim um modelo
paternalista, em que estes últimos seriam beneficiários do “progresso” trazido
pela colonização judaica”. Oh boy, é realmente tão bom ser objeto duma
colonização “paternalista” e não duma outra exterminacionista, não é assim? Mas
até onde irá a “candura”, genuína ou falsa, de Cursino? Não saberá ele, ou não
intuirá de imediato, que jogar em paternalismo
versus exterminacionismo é, no fundo,
um pouco como jogar na prática de good
cop versus bad cop?...
A questão geral
do prestígio de que “à esquerda” gozou sem dúvida o sionismo toca, porém, mais
fundo. A analogia que me ocorre quanto a isso é, de novo, fornecida pela África
do Sul. Relembro sempre o que, num dos seus justamente famosos romances (A Escola do Paraíso, de 1960, reedição
Editorial Estampa, Lisboa, 1993), José Rodrigues Miguéis, em registo de
autobiografia, escreve dando conta do quanto os republicanos portugueses de
princípios do século XX eram sistematicamente simpatizantes dos Boers, tomando
estes pelo lado da sua luta contra o império britânico (sim, é verdade, os
republicanos portugueses eram bastante “antibritânicos”, mesmo bastante mais do
que outros grupos são hoje supostamente “antiamericanos”, embora isso também
não retirasse legitimidade à sua luta…) e evidentemente pelo seu reconhecimento
enquanto nacionalidade. Esta simpatia “à esquerda” pelos Boers foi, de forma
compreensível, depois estendida no fundamental também aos sionistas, e em parte
por razões análogas. Tudo isso daria decerto para fazer correr muita tinta. Mas
uma coisa, pelo menos, é verdade: em geral, os comunistas demoraram menos tempo
a aprender, no caso do sionismo, e tiraram, embora algo tarde, as conclusões
devidas. Bem melhor, já se vê, do que a generalidade dos políticos ocidentais,
que só muito mais tarde ainda vieram a condenar inequivocamente o apartheid
sul-africano, e ainda hoje em dia se obstinam e se encarniçam quanto ao
“direito à existência de Israel”…
Em todo o caso, e
a respeito deste tema e da conduta soviética, convém sublinhar igualmente que
de início se tratou dum plano de partilha da Palestina britânica aproximadamente
com base num princípio de 50-50 por cento, e garantindo viabilidade geográfica
quer ao estado judeu quer ao estado árabe, enquanto pouco depois se passou a
uma realidade vizinha de 75-25, e correspondendo o ¼ do território destinado
aos árabes a dois blocos diferentes, sem contiguidade geográfica entre si, o
que evidentemente inviabilizava e inviabiliza a tal “solução dos 2 estados”,
transformando isso num mero pretexto retórico circunstancial, enquanto pelo
meio Israel ganha tempo e prossegue a colonização dos 20 e picos por cento de
terra ainda oficialmente palestiniana, anexa formalmente (não se contenta em
ocupar, sublinho: anexa formalmente) Jerusalém oriental, continua a despejar
mais colonos e mais colonatos
na Cisjordânia... Um sarcasmo negro, já se vê, para além duma tremenda
tragédia: a provável Endlösung a conta-gotas da “questão palestiniana”, o
desaparecimento de todo um povo, “ao vivo e a cores”, cada dia e cada ano que
passa um pouco mais...
Onde esteve todo
este tempo a “esquerda sionista”, de que Cursino tanto parece orgulhar-se, a
tal que “não demorou em romper com a visão colonialista da população da
Palestina como res nulis e a reconhecer a legitimidade da reivindicação
nacional dos árabes”? Não sei e, sinceramente, cada vez quero saber menos disso:
será assim tão fundamentalmente diferente ser chacinado por uma direita
assumida ou por uma “esquerda” (muito “democrática” e muito pró-ocidental,
claro) inapelavelmente exterminadora, malgré Cursino? Relativamente à
URSS e aos PCs, todavia, deve sublinhar-se que, com base na aprendizagem
coletiva, corrigiram a sua posição, o que é, repito, muito melhor do que
podemos dizer da generalidade dos outros protagonistas políticos.
Também quanto à
URSS, enfim, duas observações conclusivas. A primeira, para de novo corrigir Cursino:
por maiores que tenham sido as
“exasperação polémicas” associadas à Guerra Fria, é completamente falso que as
acusações oficiais dos soviéticos aos EUA fossem relativas ao suposto caráter meramente
“mecânico” da civilização destes (“Nesse contexto, falar em “cultura americana”
chegava a ser quase um oxímoro, visto que se trataria de algo puramente
mercantil e mecanizado”, etc.). Essa tonalidade de argumentação a que Cursino
alude corresponde, de facto, muito mais a uma influência de heideggerianismo
difuso, a qual sem dúvida tem, ao longo das últimas décadas, afectado importantes
segmentos da “esquerda ocidental”, sim, escola de Frankfurt incluída; mas, por
contraste, não ao marxismo soviético, maugrado todas as inegáveis limitações
deste último.
A segunda, que a própria
heroicidade do esforço soviético no combate ao nazismo e a magnitude da sua
proeza, a qual implicou sacrifícios humanos de bem mais de 20 milhões de vidas,
isto é, cerca de 4 vezes o número oficialmente associado ao “Holocausto”, tendo
aliás assim impedido a consumação deste, devia pelo menos servir como fator de
meditação e inibição: quer na ligeireza com que tanta “direita democrática” e
tanta “esquerda anti-estalinista” se referem sistematicamente à URSS enquanto
mero “totalitarismo rival”, ou “simétrico”, do III Reich; quer nas celebrações do
dito “Holocausto” enquanto pretenso “acontecimento ímpar” na história da
humanidade. Ao fim ao cabo, se da Endlösung, ou “solução final” do “problema judaico”, permanece até hoje a questão
controversa da crucial ausência do documento escrito em que a decisão tomada
pelo diretório nazi teria sido vertida, já quanto à política de take no prisoners em matéria de
“comissários” soviéticos não há, por contraste, matéria para qualquer dúvida: a
Kommissarbefehl, ou “ordem comissária”, consagra preto no branco,
indiscutivelmente, o princípio de que, para os nazis, ser comissário soviético
implicava diretamente ser abatido, evidentemente não se aplicando neste caso a
Convenção de Genebra. Não é estranho, neste contexto, que a historiografia subsequente
tenha consagrado tanto espaço ao “Holocausto”, o judeocídio intentado pelos
nazis, mas desprezado quase completamente a variedade de comunicídio, o comissaricídio,
sem qualquer dúvida intentado também pelos nazis no mesmo período? (Relativamente
a este assunto, ver aqui: http://en.wikipedia.org/wiki/Commissar_Order.
Mais amplamente, cf. também Domenico Losurdo, Il revisionismo storico. Problemi e miti, Laterza, 1996; tradução
francesa Le révisionisme en histoire.
Problèms et mythes, Albin Michel, Paris, 2006).
Infelizmente, porém, quanto
a anti-sovietismo e a anticomunismo, pode talvez aplicar-se em pleno, como aliás
a própria escrita de Cursino bem ilustra, aquilo que ele mesmo refere ao
racismo e ao antissemitismo: “A dificuldade, diga‐se, advém de um problemático
lugar-comum, ele mesmo “esclarecido”, a saber: aquele que identifica
preconceito racial com ignorância. O que incomoda em relação ao fenômeno do
antissemitismo, justamente, é que ele constitui o desmentido cabal deste lugar
comum”. Face a este magnífico esclarecimento de Cursino, concluo, para quê mais
considerações?...
Lisboa, 28 de Outubro de
2013