28 outubro, 2013

A respeito da recensão intitulada “A linguagem do império e a arte da evasiva de Domenico Losurdo” - João Carlos Graça



A respeito da recensão intitulada “A linguagem do império e a arte da evasiva de Domenico Losurdo”, por Daniel Golovaty Cursino, publicada pela revista Fevereiro (site http://www.revistafevereiro.com/pag.php?r=05&t=09)

João Carlos Graça


“Se algo salta aos olhos”, quando se lê a recensão de Daniel Golovaty Cursino ao livro Il linguaggio dell’Impero - Lessico dell’ideologia americana, de Domenico Losurdo (Editori Laterza, Roma-Bari, 2007), é a enorme confusão mental do autor e a sua tendência para a misturada incoerente de verdades e semiverdades com falsidades plenas… isso, evidentemente, para além da sua enorme má vontade para com a obra recenseada. Sem qualquer pretensão de exaustividade, procuremos ainda assim pôr alguns pontos num mínimo de is. Tomemos, a título de exemplo, o seguinte naco de prosa:
  “Ora, se algo salta aos olhos é que a campanha militar estadunidense no Iraque não segue claramente uma lógica colonialista. E, da mesma forma, é preciso muita cegueira ideológica para caracterizar a violência sectária que explodiu naquele país após a queda de Sadam Hussein como sendo típica de movimentos de libertação nacional. Tampouco o conflito israelense‐palestino pode ser equacionado no esquema clássico do colonialismo. Se é verdade que Israel expande os assentamentos judaicos na Cisjordânia palestina e, portanto, coloniza, também o é que não o faz no sentido do colonialismo histórico, isto é, como meio de dominar e explorar economicamente as populações autóctones (o que, diga‐se, em nada alivia a vida dos palestinos)”.
Traduzamos agora estas alegorias poéticas para linguagem mais prosaica. Quem negará que a violência no Iraque pós-Saddam é uma violência em grande medida sectária? Eu nego? Losurdo nega? Alguém de bom senso acaso nega? Claro que não. Nada a opor a Cursino quanto a isso, exceto que… exceto que, precisamente, muita da tal violência sectária é ativamente apoiada e promovida pelos próprios serviços de counter-insurgency da raça senhorial, isto é, dos ocupantes ianques (de forma direta através das suas forças armadas “regulares”, ou, como é sabido, mais frequentemente através de outsourcing para contractors). A verdade é que onde antes havia uma civilização, um país, um Estado — desenhado, é verdade, a régua e esquadro pelo colonialismo europeu, mas que depois adquirira a independência e, melhor ou pior, forjara o seu sentimento coletivo de pertença e o correspondente patriotismo — há agora, no rasto dos feitos do “líder do mundo livre”, uma barbárie selvática de segmentação grupal pós-moderna, seguindo linhas religiosas, étnicas e/ou outras.
Deixemos pois de lado, se se quiser, as centenas de milhar, aliás os milhões de mortos causados seja pela “segunda” guerra do Golfo, seja pela “primeira” guerra, seja ainda pelo período intermédio do comparativamente “suave” embargo económico. Deixemos de lado a gritante violação, pelos EUA, da Carta das Nações e de tudo o resto que, mais ou menos remotamente, possa ser considerado aparentado a um “direito internacional”. Deixemos ainda de lado a impostura, todavia denunciada ex post facto para além de qualquer dúvida razoável, das pretensas ligações de Saddam à Al-Qaeda, das fantasmáticas “armas de destruição maciça” do regime Baathista iraquiano, etc. — deixemos de lado, de preferência, todas essas e todas as demais patacoadas do incessante matraquear da Propaganda Fide do credo religioso “norte-americanista”. Permanece, ainda assim, o facto fundamental da destruição de um Estado, duma civilização (material e, bem entendido, “espiritual”, ou “cultural”), por outro Estado. Ou seja, o gritante análogo, nas relações entre estados, a um homicídio nas relações entre pessoas.
Relembrar isso é sinal de “antiamericanismo”? Bom, nesse caso então, lamento dizê-lo, mas… count me in. Tem de ser, não é? Factos são factos. Houve um homicídio na nossa rua, um vizinho grande, forte e poderoso assassinou à vista de toda a gente um outro vizinho mais pequeno, mais pobre e mais fraco. Recordar isso é ser “anti” bom senhor? Cursino parece pensar que sim. Bem, e sinceramente, que se lhe há-de fazer? Talvez seja realmente melhor seguir o caminho, desviar o olhar e esquecer… Não ao homicídio, entendamo-nos. Mas a este género de reação face a ele.
Já quanto ao colonialismo que está subjacente ao estado de Israel, ah, bom, por uma questão geral de precisão, entendamo-nos e procuremos esclarecer onde Cursino sobretudo obscureceu. Sempre houve, ao contrário do que ele parece assumir, um colonialismo de simples ocupação, extermínio e “limpeza” dos nativos, ao lado do mais sofisticado colonialismo de submissão/escravização. Ninguém de bom senso, mais uma vez, negará isso. Ou que Israel corresponde sobretudo ao primeiro modelo, não ao segundo… “o que, diga‐se, em nada alivia a vida dos palestinos”. Oh brother, como é bom verificar que Cursino consegue por vezes, quando se decide a ser intelectualmente honesto, acertar na mouche!
Isso, porém, está infelizmente algo longe de corresponder à mainstream da sua escrita. É o que acontece quando, por exemplo, perora contra Losurdo nos seguintes termos: “De fato, nosso autor parece incapaz de compreender que, por exemplo, os terroristas islâmicos que promoveram o massacre de 11 de Setembro não se pareciam em nada com jovens desesperados que lutavam pela libertação de algum país ocupado… Em sua maioria, eram fanáticos oriundos de uma monarquia corrupta que, apesar de ser uma aliada dos EUA, constitui – juntamente com o regime islamofascista iraniano – o principal financiador do extremismo islâmico”.
Neste ponto, pace Cursino, volta a ser impossível não ouvir os sinais de alarme. Ninguém negará, eu não nego, Losurdo não nega, que o grupo de terroristas islâmicos diretamente ligados ao 11 de Setembro tinha ramificações apontando para a tal potência aliada dos EUA, a Arábia Saudita, a qual configura um caso de regime fundamentalista, para além de patrimonialista, isto é, uma anomalia política de quaisquer pontos de vista assumindo a modernidade e os seus valores. “Saudita” é aliás, sublinhemo-lo, o nome duma dinastia. Chamar “Arábia Saudita” a um país constitui mais ou menos o equivalente do que seria designar Portugal por “Ibéria Brigantina” ou qualquer coisa no género. Algo a que, evidentemente, nem mesmo os mais intransigentes dos monárquicos portugueses se atreveriam, mesmo muito antes de 1910. Et pourtant
Mas não é este, a dita “monarquia corrupta” que é ainda assim o tal aliado dos EUA, o regime que alarma na escrita de Cursino. A Arábia Saudita teve a ver com o 911? Sim, claro que teve. Ninguém poderá dizer com segurança até onde exatamente terá chegado a colaboração dos serviços secretos desta potência com a Al-Qaeda, e de ambos com a CIA, na génese da catástrofe, mas não é esse, em todo o caso, aqui o assunto principal. Cursino, de resto, tende a ignorar o regime (patrimonialista decerto, mas fundamentalmente compliant com os EUA) de Riad, aliás mais recentemente constituído ele mesmo em grande “exportador de democracia” para Trípoli, Damasco e mais partes: seja por conta própria, seja por encomenda do grande aliado/patrono de Washington.
O assunto principal está obviamente alhures: em Teerão. E nesse ponto a coisa “fia mais fino”, como aqui dizemos. É que o regime iraniano não só não é do mesmo tipo que o saudita, como provém duma revolução que derrubou um congénere (embora algo mais aggiornato, reconheça-se) do regime de Riad. Verdade seja dita, a república iraniana, embora assente no sufrágio universal, no pluripartidarismo e em princípios genéricos de “estado de direito”, comporta também uma inegável componente “fundamentalista”, ou seja, não se trata dum estado plenamente secular, como eu preferiria, e presumivelmente também Losurdo e Cursino. Mas mesmo nisso, alto lá em matéria de conclusões, por favor. Quem são os norte-americanos, uma típica nação de “peregrinos”, de resto tão habituados a referências rituais e soleníssimas aos Pilgrim Fathers tanto quanto aos Founding Fathers, para poderem fazer reparos a quem quer que seja nessa matéria? E no resto do Ocidente… não é verdade que, por exemplo, o monarca britânico ainda hoje é, por inerência mesmo, o pontífice máximo da religião anglicana, aliás Church of England? E não é verdade também que, por reação indiciadora duma “neurose coletiva”, sim, mas que talvez eu e Losurdo nos sintamos inclinados a “compreender” ou a considerar com mais indulgência (nisso provavelmente em posição a Cursino), a república da Irlanda é um estado onde o catolicismo é reconhecido como religião oficial? E também, já agora, o Portugal pré-74 era, de acordo mesmo com a letra da Constituição de 1933, um estado-nação oficialmente católico.
Mais importante, todavia, do que estes (presumíveis) resquícios de religiosidade, em sentido estrito, nalguns casos associados ao político, são as tintas de religiosidade, em sentido amplo, de que o exercício da política se reveste. E quanto a isso, ou seja, em matéria de “ressurgência do teológico-político”, parece-me sinceramente difícil encontrar caso mais patológico do que o da nação “excecional”, a nação “escolhida por Deus”… e toda a demais costumeira lengalenga. Cursino não precisa de mais especificações acerca de quem tenho em mente, pois não? A factualidade arruma-se por si própria, desde que estejamos dispostos a considerá-la desprovidos de preconceitos, não é assim? Que legitimidade terão, então, aqueles que passam o tempo (metaforicamente falando) “de cu para o ar” virados para Filadélfia, para dizerem mal dos que passam o tempo “de cu para o ar” virados para Meca? E seria assim tão radicalmente diferente, se estivessem antes virados para Jerusalém? Ou se o ritual fosse antes simular dar cabeçadas numa parede? Bom, neste ponto, já se vê, sai de imediato o reparo de que é feio fazer chacota com as práticas religiosas dos demais. E eu próprio reconheço: pois é, pois é… mas só com as de alguns? O “voltairianismo” é bom, sim, enquanto retórica política, quando se trata de “eles”, mas já não quando se refere aos “nossos”?
Segundo explica a autoridade de Cursino, “a exemplo do que ocorre com o fenômeno do terrorismo, o ponto problemático na conceituação losurdiana do fundamentalismo é que ela deixa escapar a sua especificidade como resposta reativa, ao mesmo tempo arcaica e moderna, à própria modernidade democrática com sua constitutiva separação das esferas do poder, do direito e do saber, operada pela criação de um lugar essencialmente vazio para o exercício da autoridade política (C. Lefort). Assim, a atual ressurgência do teológico‐político só pode ser adequadamente compreendida, tanto em seu vigor quanto em seu perigo, como projeto político cujo objetivo maior é justamente colmatar aquilo que a modernidade separou, isto é, como uma revolta antidemocrática que, na ausência de projetos políticos autenticamente emancipadores, se segue historicamente à falência dos totalitarismos seculares”. Para além de Claude Lefort, esclareça-se que Daniel Cursino podia evidentemente, quanto a este assunto, ter citado ou referido também Edward Shils e Shmuel Eisenstadt, pelo menos, e com base em nomes que me ocorrem de imediato enquanto precursores “sociológicos” ou fontes do filósofo francês.
No meu entender, porém, o problema neste ponto é que se trata de um argumento demasiado encostado ao tropo sociológico de que a normalidade no desenvolvimento social (e particularmente político) corresponderia a uma diferenciação crescente, estando-se portanto perante anomalias, ou patologias, sempre que ocorresse um sobreinvestimento no político. Esse argumento, infelizmente, pode em boa verdade ser usado contra todas as formas políticas modernas, as quais tendem na verdade a ficar investidas duma aura quase-religiosa, precisamente na medida em que apelam a uma mobilização muitíssimo acrescida, por comparação com as formas políticas arcaicas. Por outro lado, e contra o tropo da pretensa normalidade da diferenciação crescente, convém igualmente recordar a noção de Ernest Gellner apontando para a necessidade duma uniformização moral crescente quanto a alguns aspetos da existência social, e como consequência direta da própria modernização. Daí a normalidade do nacionalismo, por exemplo, com a invenção de antepassados míticos comuns e seus correlatos, o que seria de algum modo um processo imposto pela “intensificação semântica” da vida nas sociedades modernas: a necessidade de falarmos todos a mesma língua, de lermos os mesmos textos “formadores”, de nos imaginarmos descendentes comuns do mesmo grupo “étnico” originário e por aí fora.
Tudo isto corresponde entretanto, sublinhemo-lo, sobretudo a especulações e conjeturas. Tenho a certeza de que poderemos encontrar sociologias, ou filosofias, capazes de justificar a “normalidade”, ou noutros casos a “patologia”, de quase todas as formas políticas que têm passado por nós ao longo dos tempos. Tudo depende, é claro, das preferências do comentador, dado o caráter da elucubração em causa, assumidamente muito longe de poder ela própria ser considerada wertfreie… Em todo o caso, e porque toda esta conversa vem de novo a desembocar no sempiterno e estafadíssimo tema dos “totalitarismos”, parece-me largamente recomendável que Cursino leia o texto, a todos os títulos notável, que Losurdo dedica precisamente a este tema, aqui: http://www.pssp.org/bbs/data/document/1/Losurdo___Critique_of_Totalitarianism_(2004).pdf
Não vou perder muito tempo com tiradas como aquela em que Cursino garante, por exemplo, que “Em seu livro, Losurdo, claramente um adepto da weltanschaung anti‐imperialista, constitui uma exceção à regra, visto que não adere propriamente ao antiamericanismo. Mas, se não o faz, é apenas ao preço de, bem ao velho estilo stalinista, apagar da história tudo aquilo que contraria as suas teses.” Ocorre-me de imediato, quanto este tema recorrente do “estalinismo”, recordar o papel sinistro que, precisamente, o “anti-estalinismo” tem desempenhado, e continua em pleno a desempenhar, no desarme/cooptação/castração/reprocessamento ideológico da chamada “esquerda ocidental”. Quanto a isso, creio que faria bem a Cursino meditar por exemplo no que James Petras escreveu em texto de 4 de Julho, dia da independência do julgamento, do ano passado. Aqui: http://www.globalresearch.ca/the-western-welfare-state-its-rise-and-demise-and-the-soviet-bloc. Mas, para falar com toda a franqueza, e dado o tom de baixo nível, mesmo algo reles, da escrita de Cursino neste ponto particular (abandonando a argumentação lógica, apelando ao cliché fácil e refugiando-se na simples injúria), também me ocorrem outras possíveis réplicas, relativas a “ismos”. Uma delas, que me atrevo a deixar como sugestão literária, corresponde ao que o poeta português Jorge de Sena escreveu no poema “Deixem-se de fingir…” (em 40 Anos de Servidão, Lisboa, Edições 70, 1989), lamentando-se e protestando contra aqueles para quem “O único ismo em consonância com os arrotos/ de bem comidos, e os rosnidos de instalados/ naquilo que criticam disfarçando-se,/ é o relismo - de reles. Nada mais”. (Acesso também aqui: http://cravodeabril.blogspot.pt/2009/09/poema_24.html)  
Em matéria de racismo e de posição dos judeus nesse tipo de mapeamentos mentais, Cursino concorda globalmente com Losurdo: “Foi a necessidade dos “arianos” europeus de diferenciar‐se racialmente, em primeiro lugar, dos povos colonias, externos ao Ocidente, que produziu neles a necessidade análoga de diferenciar‐se, agora também em termos raciais, dos judeus, um povo que há muito tempo havia chegado ao Ocidente, mas que permaneceria essencialmente “oriental”. Assim, o antissemitismo racial não apenas opera uma ruptura com a judeofobia cristã, mas também termina com um nada surpreendente ajuste de contas com o próprio cristianismo, que passaria a ser cada vez mais referido pelos antissemitas europeus (sobretudo alemães) como uma enfermidade judaica da qual tornava‐se imperioso tomar a devida distância”.
Na verdade, quanto a racismo muito mais poderia evidentemente dizer-se, desde logo destacando que a categoria central pode realmente ser a de “arianos”, mais frequentemente associada ao nazismo, é verdade, mas também ao conceito de “indo-europeus”, o qual obteve uma consagração científica (linguística) indisputável até aos nossos dias, sendo William Jones um autor cujo legado merece sem dúvida todo o respeito, independentemente das associações imperiais/coloniais a que a própria produção da categoria veio ligada. Apelar à categoria de “arianos” pode também corresponder, e de facto correspondeu, à démarche central do Gandhi de determinado período, o qual pretendia que os “irmãos arianos” britânicos reconhecessem nos indianos parentes étnicos, ainda que afastados e de epiderme escura, enquanto outros povos, como os zulus, seriam realmente merecedores de cláusulas de exclusão, dada não a respectiva epiderme, mas presumivelmente o idioma. (Ver, quanto a isto, o que Losurdo escreve acerca do tema da relatividade da “não-violência” de Gandhi, no livro dedicado a esse tema: La non-violenza - Una storia fuori dal mito, Editori Laterza, Roma-Bari, 2010). A categoria central da taxonomia racista pode, entretanto, ser não a de “arianos”, meritória cientificamente malgré tout, apesar das desagradáveis ressonâncias potencialmente “nazificantes”, mas por exemplo a de “caucasianos”, a qual se deve ao naturalista Johann Friedrich Blumenbach, de facto muito menos suscetível de ser repescada cientificamente (veja-se, quanto a isso, entre todos o soberbo livro de Steven Jay Gould intitulado The Mismeasure of Man, W. W. Norton & Company, NY and London, 1981; tradução portuguesa A Falsa Medida do Homem, Lisboa, Círculo de Leitores, 2004), mas ainda assim habitualmente considerada não “nazificante”, portanto supostamente menos temível, e mesmo quase respeitável: a ponto de ser usada de forma banal, e com aparente “neutralidade axiológica”, enquanto simples categoria de polícia, na “grande democracia”… ao lado de categorias contrastantes, tais como, entre outras, “africano”, “americano nativo” e “latino”. Sendo a categoria de “latino” associada neste contexto, admitamo-lo, a conotações decerto bem diversas das que Olavo Bilac teria em mente quando, no famoso poema, se referia à língua portuguesa como “última flor do Lácio, inculta e bela”…
Declarando depois concordar globalmente com Losurdo quanto à distinção entre judeofobia e antissemitismo, Cursino expressa todavia dúvidas quanto à categoria de “antijudaísmo”. Deixando agora de lado inúmeros detalhes, destacam-se das objeções de Cursino ao tratamento a que Losurdo procede: a) a notória plasticidade do racismo antijudaico, haja vista que suas vítimas são acusadas a um só tempo de serem banqueiros inescrupulosos e comunistas empedernidos; arraigados às suas tradições e cosmopolitas desenraizados, etc.; b) o fato de que o Holocausto judeu se deu em uma época em que não havia mais nada da tal posição objetiva dos judeus na divisão social do trabalho; c) a estranha “universalidade” deste racismo, explicitada no fato de que ele pode verificar‐se nas mais diversas – e até mesmo opostas – correntes políticas”.
Perante isto, acrescento agora eu, é difícil evitar a perplexidade. Ser acusado simultaneamente duma coisa e do seu oposto é sinal, para Cursino, de “excecionalidade”? Que essas acusações não correspondam, nem remotamente, aos factos, indicia “excecionalidade”? Que haja pessoas, quanto a outros critérios muito diferentes entre si, que sejam unânimes numa condenação, constitui segundo Cursino um sintoma de “excecionalidade”? Parece-me, muito sinceramente, que o problema principal está em Cursino e na sua assunção mais ou menos explícita da centralidade, ou “axialidade”, da história judaica relativamente à história humana, ou universal. Basta pensar, por exemplo, na Jugoslávia e em Milosevic, que em 1999 eram (abusivamente, falsamente, de forma descaradamente manipulativa) acusados pela NATO de expulsarem os kosovares de etnia albanesa do Kosovo, mas também, e em simultâneo (talvez por reemergência circunstancial de um meme mais antigo, relativo à Guerra Fria), de os impedirem de sair, para ver que a alínea a) de Cursino cai de imediato por terra. Relativamente à alínea b), é ver o quanto as acusações contra o próprio Milosevic permaneceram por provar até ao fim, tendo assim o “tribunal” da Haia (que o mandara pôr a ferros no preciso momento em que as bombas “humanitárias” caíam em Belgrado!) de o manter preso e deitar fora a chave, empastelando indefinidamente o julgamento e deixando que acontecesse o oops!, “acidente” oh-so-convenient da sua estranha morte sob custódia, por deficiência de tratamento médico… E entretanto, na Europa ocidental, gente de direita, gente de centro e gente de “esquerda” lá continuava, unida na irracional sanha comum contra a Jugoslávia, contra os sérvios, contra Milosevic… Mentiras bastante absurdas, já pode Cursino ver, podem ser mantidas contra quase toda a gente, todas as etnias e todos os demais grupos, todos os indivíduos, tudo dependendo da conveniência majestática, imperial ou outra, e da subsequente propaganda: a história judaica, por triste, injusta ou absurda que seja, não constitui quanto a isso uma exceção ou um acontecimento “axial”; é um caso mais, entre tantos outros casos.
Cursino, porém, não está disposto a essa admissão. Para ele, “Holocausto” é coisa para escrever uma e outra vez, de preferência sempre com maiúsculas, a bold e em caracteres 14. E é precisamente essa assunção da centralidade do Holocausto, e da “axialidade” e “excecionalidade” da história judaica, que torna difícil manter um diálogo equilibrado com o historiador da Fevereiro. Segundo este opina, a história do século XX obriga-nos “a uma revisão crítica (a qual só pode ser feita por meio da própria razão) de toda a nossa tradição, tarefa que, como se sabe, foi empreendida por autores como Adorno e Horkheimer. É claro que Losurdo está correto ao afirmar que seria anti‐histórico projetarmos nossa sensibilidade contemporânea sobre autores que viveram em séculos passados. Entretanto, desta vez de um modo bem afeito ao pensamento histórico de Marx (“a anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco”), deveríamos afirmar que o inverso também é verdadeiro, isto é, depois de Auschwitz, certos textos já não podem mais ser lidos como se nada tivesse passado. A catástrofe do século XX cria retroativamente os seus precursores”.
Traduzindo de novo de poesia para linguagem prosaica: a “civilização ocidental”, o tal suposto berço da racionalidade, deve ainda assim manter-se sossegada e penitente, piedosamente penitente, em relação ao “povo judaico”; e o recipiente beneficiário dessa penitência deve, como é óbvio, ser o estado de Israel. Cale-se, portanto, quem falar de Shoah Business ou de Holocaust Industry. Os que sugerirem que Israel capitaliza moralmente e manipula, embora com base em sofrimentos muito reais, devem imediatamente silenciar-se, sob pena de ser invocada contra eles não apenas a “autoridade” dos cultores da “excecionalidade” judaica ou sionista (estritamente religiosos ou seculares, judeus ou cristãos, isso pouco importa), mas também a de Adorno, a de Horkheimer, até mesmo agora a de Marx…
E neste ponto, desculpem lá, mas volto a sentir que é necessário intervir, para esclarecer um certo número de pontos e acabar com todas estas imposturas tolas ou, pardon my French, com todas estas “macacadas”. Antes de mais, esclareça-se que racionalidade é universalidade, não é “ocidentalismo”. Os cultores da excecionalidade ocidental, que pretendem fazer da tal suposta “civilização ocidental” o berço ou, pior ainda, o depositário perpétuo e exclusivo da racionalidade, erram; e erram de forma muito grave e logo à partida. Depois, se Cursino acha que algo no judeocídio intentado pelos nazis no século XX implica uma reavaliação retrospetiva da dita “civilização ocidental”, pelo meu lado, saiba que pode ficar à vontade. Penso é que deve procurar fazê-lo “por meio da própria razão”, sim; e nunca contra esta. Mas tomemos um exemplo concreto, para tornar mais claros os contornos desta questão. Algures nas suas Cartas Filosóficas, Voltaire fazia troça dos espíritos piedosos cristãos (em concreto, Blaise Pascal) que, cavalgando a noção de “excecionalismo” judeu e transmutando-a ele mesmos num pretenso “excecionalismo” cristão, apelavam à noção duma intervenção direta, divina, na história humana. Se a Assíria tinha destruído o estado judaico e séculos depois a Pérsia tinha, por sua vez, destroçado o poder assírio, a que ficaria isso a dever-se? Obviamente, a intervenção de Jeová, que assim exercia contra o estado e contra o povo assírio a justíssima vindicta, de que aqueles se tinham tornado imprescritivelmente merecedores, dados os execrandos pecados cometidos pelos seus antepassados de várias gerações atrás…
Agora bem: o recurso a este género de ironia “voltairiana” é legítimo, no exercício da razão histórica? A resposta sugerida por Cursino é que não. Pelo menos, depois de Auschwitz deixou, retroativamente, de ser legítimo. A minha resposta, pelo contrário, é que continua a ser; e agora, talvez, mais do que nunca. A linha de oposição é particularmente relevante, uma vez que é referida à pretensa “negação do Holocausto” por parte do ex-primeiro-ministro iraniano Ahmadinejad, e ao seu não reconhecimento do direito à existência do estado de Israel.
E quanto a isto, de novo, por favor os pontos nos is. O que significa ser “negador do Holocausto”? Trata-se de negar a factualidade do judeocídio intentado pelos nazis? Trata-se de negar, por exemplo, que houve os tais célebres 6 milhões de mortos? Já mesmo quanto a este aspeto, devo dizer, as razões da investigação historiográfica devem na minha opinião sobrepor-se a tudo o mais. Suponha-se que, com base em documentos irrefutáveis, se vinha a falar não de 6 milhões, mas de 5, ou por oposição de 7? Configuraria isso uma “negação do Holocausto”? E como medir a aceitabilidade, ou não, do mencionado “revisionismo”? A luz amarela acende, “para baixo”, em 5.5, enquanto no caso de desvio “para cima” aparece apenas em 7 milhões? Sendo a correção de sentido descendente, a 5 milhões entra-se no vermelho, enquanto no caso ascendente isso ocorre apenas a 8? Quais os limites do aceitável, em nome de quem ou de quê é este fixado, e por quem? Com a luz amarela é-se expulso da universidade, quando se chega à luz vermelha é-se posto a ferros?
Já se adivinha o inferno em que se entra quando, na investigação, se abandona a norma de “a verdade e nada mais do que a verdade”, optando-se por outras regras, de natureza pia. O principal, porém, ainda não é isso. A questão está de facto, antes de mais, na tal “centralidade” ou “axiologia” do dito Holocausto (com maiúscula, claro), no caráter que, dum ponto de vista cosmogónico/escatológico assumidamente judeocêntrico, o tal Holocausto teria enquanto refundação absoluta, “momento zero”, atonement, Apocalipse ou o que de aparentado se queira mais. Ora bem, quanto a tal, Cursino está evidentemente do lado da obra pia, enquanto Voltaire, Losurdo, Ahmadinejad e eu próprio estamos do lado da Razão. Com nuances, é evidente, adentro deste “bando dos 4” que o meu atrevimento retórico se abalançou a compor. Losurdo, talvez o mais indulgente do grupo face às pretensões de Cursino, ainda leva a sua boa vontade até ao ponto de afirmar que se pode “dizer que, depois do horror de Auschwitz, certos movimentos espirituais se tornaram intoleráveis; no entanto, seria anti‐histórico projetar nossa sensibilidade hodierna diretamente sobre textos de dois séculos atrás”. Isso, porém, não satisfaz Cursino. É necessário reconhecimento sem ambiguidades da excecionalidade do “povo eleito”, ou nada. Excomunhão, perda da cátedra, proibição de lecionar, censura, prisão: eis os tormentos destinados àqueles que praticarem as ousadias do cepticismo e do livre inquérito…
Assim, não admira que Cursino se indigne contra Losurdo e os cuidados deste ao tratar dos discursos de Ahmadinejad, contraponto o articulista da Fevereiro que “o antissemitismo vigente no mundo árabeislâmico está longe, muito longe, de ser um fenômeno marginal. Trata‐se de uma região do mundo em que os famigerados Protocolos dos Sábios de Sião são ensinados nas escolas como verdadeiros documentos históricos e a autobiografia de Hitler é permanentemente um best-seller. O Holocausto é apenas mais uma mentira da conspiração judaica para dominar o mundo, perfidamente incutida nos povos ocidentais pelos mídia, que, é claro, são amplamente dominados pelos judeus. Trata‐se aqui de uma loucura sancionada publicamente pelos aparelhos ideológicos estatais, bem como por grande parte dos intelectuais e dos mídia dos regimes árabes. Malgrado as grandes diferenças, no que diz respeito ao ódio antijudaico, a única analogia histórica possível neste contexto – no qual a destruição de Israel e o extermínio de judeus são moralmente legitimados – é com a Alemanha dos anos 1930”.
            E de novo, face a esta salganhada, é difícil encontrar por onde começar. Antes de mais, seria um completo absurdo os árabes serem antissemitas. É que, recordemo-lo, eles também são semitas, não é assim, caro Cursino? Não vou aqui entrar nos detalhes, por exemplo, da argumentação de Shlomo Sand (em The Invention of the Jewish People, Verso, London and NY, 2009), segundo a qual os verdadeiros descendentes dos judeus da Antiguidade seriam os palestinianos, dado que os judeus europeus, ocidentais ou orientais, sefarditas ou Ashkenazy, proviriam de outros povos entretanto convertidos ao judaísmo, o qual teria sido durante muito tempo uma realidade sobretudo religiosa e praticante do proselitismo, não uma realidade étnica, inventada esta só no século XIX pelo movimento sionista. Evidentemente, pode subscrever-se ou não as teses de Sand, mas o importante é destacar que: a) ele retira da sua obra uma opção clara pelo princípio de “um homem, um voto”, num estado único, secular, não-étnico e fundado no jus solis, no território de Israel/Palestina, o que me parece um desiderato político inatacável; b) os adversários de Sand “descobriram a sua própria careca”, como aqui dizemos, revelaram bem o seu íntimo racista, quando se obstinaram contra ele em argumentos “genéticos” que decerto orgulhariam qualquer Galton, e talvez ainda seja dizer pouco… (Quanto a este assunto, ver aqui, sff: http://en.wikipedia.org/wiki/The_Invention_of_the_Jewish_People).
Depois, sinceramente, que coisa será essa de “mundo árabeislâmico”? Saberá Cursino, por exemplo, que a maior parte dos muçulmanos de todo o mundo está muito longe de ser composta por árabes? Que os maiores estados de população predominantemente muçulmana, Indonésia, Paquistão, Bangladesh, Irão, não são estados árabes? Que a maior “nação muçulmana” do mundo, aliás, caso se tratasse dum estado-nação, seria a minoria muçulmana que permaneceu no interior da União Indiana mesmo depois da secessão do Paquistão e do Bangladesh? Recomendo a Cursino, portanto, um pouco mais de prudência, de tento na língua e de rigor na elaboração concetual. Os muçulmanos de todo o mundo merecem-no sem dúvida. Não só, ou não sobretudo, por serem muçulmanos; mas por se tratar de seres humanos, claro. E também por isso ser verdade, o que não deveria ser despiciendo…
Enfim, mesmo que as tiradas cursinianas sobre o pretenso sucesso editorial dos Protocolos dos Sábios de Sião e da biografia de Hitler no tal “mundo árabeislâmico” fossem verdadeiras, o que evidentemente não é o caso, ainda assim, em nome do rigor científico, Cursino deveria saber abster-se de concluir que “a única analogia histórica possível neste contexto (…) é com a Alemanha dos anos 1930”. Olhe que não, caro Cursino, olhe que não. Aliás, relembro quanto a isto que, apesar de tanto ser possível morrer atacado por um crocodilo, como atacado por um tubarão, um cientista que concluísse desse facto que “a única analogia possível” para cada uma dessas espécies seria a outra, designando ambas, por exemplo, pela categoria de “Leviatã” (quiçá “Leviatã marítimo” para o tubarão, “Leviatã lacustre” para o crocodilo), seria, permito-me dizê-lo, um mau cientista e um péssimo taxonomista. Na verdade, e como se sabe, ou deve saber, o crocodilo (todos os crocodilos) está filogeneticamente muito mais perto dos primatas e do homem do que do tubarão. A categoria de “Leviatã” é, assim, um completo absurdo do ponto de vista da biologia; desculpável talvez numa mente assustada, temerosa e propensa ao obscurantismo; completamente insuportável da parte de quem se reclame da ciência, do rigor concetual e da verdade factual.   
Em toda esta história, porém, não interessa tanto Ahmadinejad supostamente negando a factualidade do “Holocausto” (isto é, do judeocídio intentado pelos nazis no século XX), ou sequer a importância escatológica deste evento, mas sobretudo a relação disso com as populações do Médio Oriente, em particular os palestinianos. Em suma, trata-se, da parte de Ahmadinejad, de indagar: mesmo que, por hipótese, tudo isso que “vocês ocidentais” contam seja verdadeiro; e mesmo que, para vós, em virtude das vossas crenças religiosas (não apenas ou não tanto o judaísmo, mas muito mais amplamente o “culto do Holocausto” enquanto rito, mito e dogma da religião cívica do “Ocidente”), tudo isso seja sacrossanto e “axiológico” — ainda assim, que diabos têm os palestinianos a ver com toda essa história? Porquê, em nome de que praga, terão eles sido nomeados enquanto pagadores da dívida que o Cosmos, ou o Ocidente, ou a Humanidade teriam para com o “povo eleito”? Se o Ocidente acha que realmente deve algo a “os judeus”, e se de facto pensa que as organizações sionistas são os cobradores legítimos de tal dívida — por que não cederá o Ocidente algo do seu território a “os judeus”, ou às organizações sionistas? Porque não lhes dará, por exemplo, a Pomerânia? Ou a Silésia? Ou a Andaluzia? Ou a Califórnia setentrional? Ou a meridional? Imagina-se aliás, quanto a isso, um fácil exercício mental de comparação, remetendo para a “questão irlandesa”. Sem dúvida que se trata aqui de um povo submetido a colonização por outro povo europeu, a qual em parte resultou em escravização fáctica, em parte em extermínio, ou quase. Ainda assim, se uma hipotética Organização Mundial Irlandesa, em nome dum putativo passado céltico (real ou lendário, pouco importa) reclamasse a colonização em massa da Galiza e/ou do norte de Portugal como via para a solução da “questão irlandesa”... seria natural que nesse caso houvesse problemas, e problemas mesmo muito sérios, com os “nativos” galegos ou minhotos, não?   
E neste ponto, caro Cursino, creio que chegamos de facto ao cerne da questão. Por verdadeiro que tenha sido o judeocídio intentado pelos nazis, e antes dele verdadeiros também os séculos e séculos de perseguições religiosas de que os judeus foram vítimas na Europa — ainda assim, qual a legitimidade da pretensão de nomear os palestinianos para “pagar as favas” de tudo isso? É ou não verdade que o estado de Israel é um estado não dos nativos do seu território, dos seres humanos que lá nasceram e lá vivem, mas um estado dos judeus de todo o mundo, aliás da Volksgemeinschaft judaica? Se a Alemanha tem sido, por excelência, o país de irrupção de conceções “comunitaristas” do social, como Cursino tende no seu escrito a assumir (de resto, talvez demasiado apressadamente, mas não é esse agora o assunto), então teremos de concluir que o problema fundamental com o estado de Israel é tratar-se aqui de um estado, digamos, alemão, demasiado alemão... Em que consiste, assim, o tal sacrilégio de se ser “contrário à existência do estado de Israel”? Assumindo desde o princípio como moto o lema de “uma terra sem povo para um povo sem terra”, o estado de Israel é ele mesmo, sublinhemo-lo, um estado fundamentalmente “negacionista”. Está de facto assente: não apenas a) no apagamento físico, na “limpeza” (expulsão ou extermínio) de todo um povo de autóctones, de gente que teve o azar de estar lá antes, e que foi tratada como não gente quer pelas autoridades coloniais britânicas que previamente administravam o território, quer pelos colonos sionistas entretanto chegados à “terra prometida”, a tal “terra sem povo”; mas, ainda mais b) no subsequente “apagamento da memória”, na “limpeza” historiográfica que veio depois, a qual apenas vagamente evoca, através da expressão aliás muito contestada de “Nakba”, todo esse dolorosíssimo “episódio” que a auto-celebração colectiva de Israel tende compreensivelmente a atirar para debaixo do tapete, ou pelo menos a envolver em neblina, reduzindo-a à vacuidade das alegorias lendárias...
Bom, mas então, replicarão alguns, pretender-se-á agora expulsar os colonos judeus e os seus descendentes entretanto nascidos em Israel? E a resposta óbvia é: claro que não! O desaparecimento da White South Africa não significou que os brancos sul-africanos fossem deitados à água, pois não? Pois bem, no caso de Israel, trata-se de reclamar que, no território da antiga Palestina britânica, seja erigido um novo estado: secular, não-étnico, fundado no jus solis, isto é, na cidadania plena de todos os aí nascidos e no princípio de “um homem, um voto”, analogamente ao que se fez na outrora White South Africa, passando esta então a “África do Sul”, simplesmente. Deveria ser simples e tranquilo, não é? Bom, na verdade, realmente não é. Porquê? Pois bem, porque isso significaria o desaparecimento de Israel qua Israel. Nesse caso, deixaria de haver o “estado dos judeus”, o que corresponde à definição quintessencial de Israel — o tal estado em que os judeus têm direito de cidadania, se a requerem, sejam eles nascidos em Nova Iorque ou Riga, Buenos Aires, Adis Abeba ou Vladivostok, isto é, tendo rigorosamente patavina a ver com o território, mas essa cidadania continua entretanto a ser negada aos Untermenschen nativos — para passar a existir um estado “normal” do ponto de vista da modernidade. Cursino concordará com isso? Pois olhe que é melhor repensar e tomar cuidado, sob pena de o “bando dos quatro” ter de passar a “bando dos cinco”...
Cursino alude ainda, quanto a este tema, ao facto de ter havido uma tradição, por parte da URSS e da generalidade dos PCs, de reconhecimento do problema judeu/sionista enquanto reclamação anti-colonial legítima, o que constitui uma semi-verdade. Citando Losurdo, escreve ele que “no sionismo encontra [o movimento comunista] a exigência de um povo, tradicionalmente oprimido, de conseguir o reconhecimento não só como conjunto de indivíduos, mas também como povo, como cultura, como entidade metaindividual”. Por exemplo, na URSS de Stalin, sim, os judeus conquistaram não apenas igualdade geral de direitos com os demais cidadãos, mas também o reconhecimento duma região, na qual eram maioritários e que ficou consagrada constitucionalmente como região judaica (o que não significa que tivessem o direito de expulsar de lá os não-judeus, evidentemente). Isso, porém, fez a URSS, num certo sentido, à custa de si mesma, o que é, por princípio, obviamente inatacável enquanto prática. Outra coisa, bem diversa, é o que fez o Império Britânico à custa de outros, isto é, dos palestinianos. Por outro lado, também é verdade, sim, que a URSS de Estaline favoreceu a própria criação do estado de Israel e o seu reconhecimento logo de início pela ONU (alegando até alguns que “Estaline criou Israel”; cf. relativamente a isto, Leonid Mlecin, Perché Stalin creò Israele, Sandro Teti Editore, Roma, 2010), tendo-se as relações recíprocas estragado só mais tarde, no ano da “separação das águas” de 1956, quando Israel foi decididamente cooptado pela “irmandade ariana”, ou “caucasiana”, enquanto país de “ocidentais honorários”, alinhados portanto no fundamental com a NATO e submetidos por isso à tutela dos EUA, etc. (Quanto a este assunto, ver, de Luciano Canfora, 1956 L’anno spartiacque, Sellerio Editore, Palermo, 2008).
Tudo isso deve, porém, ser considerado com muito mais cuidado, e havendo em linha de conta vários outros fatores. Diversas componentes causais sem dúvida se entrecruzam neste enredo. Não nego que o efeito moral do imediato pós-Auschwitz tenha jogado algum peso na conduta soviética — para além, evidentemente, do fascínio que os EUA tenham exercido também sobre o movimento sionista. Infelizmente, segundo opina Losurdo citado por Cursino, a tal “exigência de reconhecimento” do sionismo “é buscada às custas de outro povo, que tende a ser assemelhado a uma tribo indígena, segundo o modelo estadunidense, naqueles anos confusos de grande prestígio”. Neste ponto, porém, Cursino reage ultrajado: “A comparação entre a colonização sionista e o Far West americano consiste em uma falsificação grosseira. É verdade que Herzl olhava com simpatia para os EUA, mas este nunca preconizou um extermínio de árabes, mas sim um modelo paternalista, em que estes últimos seriam beneficiários do “progresso” trazido pela colonização judaica”. Oh boy, é realmente tão bom ser objeto duma colonização “paternalista” e não duma outra exterminacionista, não é assim? Mas até onde irá a “candura”, genuína ou falsa, de Cursino? Não saberá ele, ou não intuirá de imediato, que jogar em paternalismo versus exterminacionismo é, no fundo, um pouco como jogar na prática de good cop versus bad cop?...
A questão geral do prestígio de que “à esquerda” gozou sem dúvida o sionismo toca, porém, mais fundo. A analogia que me ocorre quanto a isso é, de novo, fornecida pela África do Sul. Relembro sempre o que, num dos seus justamente famosos romances (A Escola do Paraíso, de 1960, reedição Editorial Estampa, Lisboa, 1993), José Rodrigues Miguéis, em registo de autobiografia, escreve dando conta do quanto os republicanos portugueses de princípios do século XX eram sistematicamente simpatizantes dos Boers, tomando estes pelo lado da sua luta contra o império britânico (sim, é verdade, os republicanos portugueses eram bastante “antibritânicos”, mesmo bastante mais do que outros grupos são hoje supostamente “antiamericanos”, embora isso também não retirasse legitimidade à sua luta…) e evidentemente pelo seu reconhecimento enquanto nacionalidade. Esta simpatia “à esquerda” pelos Boers foi, de forma compreensível, depois estendida no fundamental também aos sionistas, e em parte por razões análogas. Tudo isso daria decerto para fazer correr muita tinta. Mas uma coisa, pelo menos, é verdade: em geral, os comunistas demoraram menos tempo a aprender, no caso do sionismo, e tiraram, embora algo tarde, as conclusões devidas. Bem melhor, já se vê, do que a generalidade dos políticos ocidentais, que só muito mais tarde ainda vieram a condenar inequivocamente o apartheid sul-africano, e ainda hoje em dia se obstinam e se encarniçam quanto ao “direito à existência de Israel”…
Em todo o caso, e a respeito deste tema e da conduta soviética, convém sublinhar igualmente que de início se tratou dum plano de partilha da Palestina britânica aproximadamente com base num princípio de 50-50 por cento, e garantindo viabilidade geográfica quer ao estado judeu quer ao estado árabe, enquanto pouco depois se passou a uma realidade vizinha de 75-25, e correspondendo o ¼ do território destinado aos árabes a dois blocos diferentes, sem contiguidade geográfica entre si, o que evidentemente inviabilizava e inviabiliza a tal “solução dos 2 estados”, transformando isso num mero pretexto retórico circunstancial, enquanto pelo meio Israel ganha tempo e prossegue a colonização dos 20 e picos por cento de terra ainda oficialmente palestiniana, anexa formalmente (não se contenta em ocupar, sublinho: anexa formalmente) Jerusalém oriental, continua a despejar mais colonos e mais colonatos na Cisjordânia... Um sarcasmo negro, já se vê, para além duma tremenda tragédia: a provável Endlösung a conta-gotas da “questão palestiniana”, o desaparecimento de todo um povo, “ao vivo e a cores”, cada dia e cada ano que passa um pouco mais...
Onde esteve todo este tempo a “esquerda sionista”, de que Cursino tanto parece orgulhar-se, a tal que “não demorou em romper com a visão colonialista da população da Palestina como res nulis e a reconhecer a legitimidade da reivindicação nacional dos árabes”? Não sei e, sinceramente, cada vez quero saber menos disso: será assim tão fundamentalmente diferente ser chacinado por uma direita assumida ou por uma “esquerda” (muito “democrática” e muito pró-ocidental, claro) inapelavelmente exterminadora, malgré Cursino? Relativamente à URSS e aos PCs, todavia, deve sublinhar-se que, com base na aprendizagem coletiva, corrigiram a sua posição, o que é, repito, muito melhor do que podemos dizer da generalidade dos outros protagonistas políticos.
Também quanto à URSS, enfim, duas observações conclusivas. A primeira, para de novo corrigir Cursino: por maiores que tenham sido as “exasperação polémicas” associadas à Guerra Fria, é completamente falso que as acusações oficiais dos soviéticos aos EUA fossem relativas ao suposto caráter meramente “mecânico” da civilização destes (“Nesse contexto, falar em “cultura americana” chegava a ser quase um oxímoro, visto que se trataria de algo puramente mercantil e mecanizado”, etc.). Essa tonalidade de argumentação a que Cursino alude corresponde, de facto, muito mais a uma influência de heideggerianismo difuso, a qual sem dúvida tem, ao longo das últimas décadas, afectado importantes segmentos da “esquerda ocidental”, sim, escola de Frankfurt incluída; mas, por contraste, não ao marxismo soviético, maugrado todas as inegáveis limitações deste último.
A segunda, que a própria heroicidade do esforço soviético no combate ao nazismo e a magnitude da sua proeza, a qual implicou sacrifícios humanos de bem mais de 20 milhões de vidas, isto é, cerca de 4 vezes o número oficialmente associado ao “Holocausto”, tendo aliás assim impedido a consumação deste, devia pelo menos servir como fator de meditação e inibição: quer na ligeireza com que tanta “direita democrática” e tanta “esquerda anti-estalinista” se referem sistematicamente à URSS enquanto mero “totalitarismo rival”, ou “simétrico”, do III Reich; quer nas celebrações do dito “Holocausto” enquanto pretenso “acontecimento ímpar” na história da humanidade. Ao fim ao cabo, se da Endlösung, ou “solução final” do “problema judaico”, permanece até hoje a questão controversa da crucial ausência do documento escrito em que a decisão tomada pelo diretório nazi teria sido vertida, já quanto à política de take no prisoners em matéria de “comissários” soviéticos não há, por contraste, matéria para qualquer dúvida: a Kommissarbefehl, ou “ordem comissária”, consagra preto no branco, indiscutivelmente, o princípio de que, para os nazis, ser comissário soviético implicava diretamente ser abatido, evidentemente não se aplicando neste caso a Convenção de Genebra. Não é estranho, neste contexto, que a historiografia subsequente tenha consagrado tanto espaço ao “Holocausto”, o judeocídio intentado pelos nazis, mas desprezado quase completamente a variedade de comunicídio, o comissaricídio, sem qualquer dúvida intentado também pelos nazis no mesmo período? (Relativamente a este assunto, ver aqui: http://en.wikipedia.org/wiki/Commissar_Order. Mais amplamente, cf. também Domenico Losurdo, Il revisionismo storico. Problemi e miti, Laterza, 1996; tradução francesa Le révisionisme en histoire. Problèms et mythes, Albin Michel, Paris, 2006).
Infelizmente, porém, quanto a anti-sovietismo e a anticomunismo, pode talvez aplicar-se em pleno, como aliás a própria escrita de Cursino bem ilustra, aquilo que ele mesmo refere ao racismo e ao antissemitismo: “A dificuldade, diga‐se, advém de um problemático lugar-comum, ele mesmo “esclarecido”, a saber: aquele que identifica preconceito racial com ignorância. O que incomoda em relação ao fenômeno do antissemitismo, justamente, é que ele constitui o desmentido cabal deste lugar comum”. Face a este magnífico esclarecimento de Cursino, concluo, para quê mais considerações?...


Lisboa, 28 de Outubro de 2013