01 julho, 2010

Lohman Nietzsche Losurdo - Aguardente e cristianismo

Este estudo estabelece novos parâmetros de referência: Domenico Losurdo reinterpreta o filósofo Friedrich Nietzsche.

Por Hans-Martin Lohmann, “Die Zeit”, 1º de julho de 2010


Para o poeta Gottfried Benn, Nietzsche tem sido “o maior fenômeno de fascinação da história das ideias”. Mas o “fenômeno” Nietzsche não se exaure no enorme fascínio que provém de sua obra: mostra-se sobretudo no fato que, como nenhum outro, ele suscitou as reações mais diversas e controversas. Se olharmos para a história da sua recepção, Friedrich Nietzsche, o filho do pastor de Röcken, permanece até hoje uma pedra de tropeço na qual tantos já quebraram os dentes.

Digamos logo de partida: este estudo de mais de 1.000 páginas do filósofo italiano Domenico Losurdo, que apareceu na Itália em 2002 e alcançou a terra de Nietzsche, é um acontecimento intelectual extraordinário e poderia estabelecer por longo tempo um novo padrão de medida. Losurdo forneceu uma obra de referência e de consulta que, por exemplo, faz parecer bastante velho um livro como o Nietzsche Handbuch de Henning Ottmann, publicado em 2000.

Quem possuir apenas algum conhecimento da literatura nietzscheana hoje em circulação não pode deixar de constatar como a filosofia de Nietzsche foi utilizada como uma espécie de mina, da qual cada um tira o que mais lhe agrada: arbitrariedade e abandono ao subjetivismo são termos ainda fracos para definir o ultrajoso uso e abuso da sua obra (uma coisa para a qual são não pouco responsáveis os encorajamentos de Michel Foucault). Nietzsche como psicólogo, Nietzsche como esteta e artista, como antissemita e anti-antissemita, como “Godfather of Fascism” e “nazista ante litteram”, como crítico da moral, como poeta e “Prinz Vogelfrei”: ouvimos tudo isto e mais ainda.

Losurdo desmonta com prazer todas essas interpretações nos seus componentes ideológicos, porque, como ninguém antes dele, lê Nietzsche com uma exatidão e uma precisão extraordinária e o reconduz ao seu contexto histórico. Na contextualização histórica da obra de Nietzsche, sempre compreensível e conduzida com grande minúcia, está o maior mérito de Losurdo, porque esta contextualização torna perceptíveis nexos e continuidades no pensamento de Nietzsche que, de outro modo, continuariam invisíveis.

Enquanto a interpretação pós-modernista dominante de Nietzsche, que se refere a ele exatamente como o precursor do pós-modernismo filosófico (Jean-François Lyotard, Gianni Vattimo e tutti quanti), se configura como uma “hermenêutica da inocência”, Losurdo segue Nietzsche com suas próprias palavras. Mostra como o seu discurso insistente sobre a necessidade da escravidão e da luta contra a revolta dos fracos, dos malogrados e dos medíocres – por Nietzsche definidos como “rebanho” e “ralé” – não é um inocente uso de metáforas, mas algo terrivelmente sério.

A este respeito Losurdo lembra que o primeiro Nietzsche não era apenas testemunha da época do abolicionismo nos Estados Unidos, mas também da Comuna de Paris, na qual ele conseguia ver apenas a “horrenda destruição” da civilização (Kultur). Nessa época, em abril de 1871, Gustave Flaubert escrevia a George Sand: “’Ah, graças a Deus existem os prussianos’ é o grito universal dos burgueses. Para mim os senhores operários são todos da mesma laia e poderiam ser todos jogados no rio!” Exatamente o mesmo era o slogan de Nietzsche: devolver os “senhores operários” à casta dos escravos. Losurdo sugere de maneira clara que o texto publicado no início dos anos 1870, O nascimento da tragédia pelo espírito da música, poderia também intitular-se: A crise da civilização: de Sócrates à Comuna de Paris.

Apesar de haver diversas fases no pensamento de Nietzsche – fases nas quais os acentos e os centros de gravidade se deslocam de maneira notável e que Losurdo não contesta – o autor pode demonstrar de maneira convincente, e através de textos, que do início ao fim este pensamento é profundamente político e é atravessado por um motivo central. Ou seja, a ideia de que a história possa ser compreendida como uma história da “luta de camadas e de classes”, uma luta na qual os senhores (que produzem a cultura) devem afirmar-se contra os servos (que são privados da cultura). Toda a história é, portanto, uma história de lutas de classe, de acordo com Marx, em relação ao qual emergem, pelo menos no plano diagnóstico, pontos de contato interessantes.

Segundo o Losurdo filósofo da política – cujas leituras preferidas são as dos historiadores conservadores como Tocqueville, Taine, Burke e Jacob Burckhardt –, Nietzsche se revela como o mais brilhante expoente intelectual de um movimento elitista que atravessa a Europa inteira e que sabe estar unido na luta contra a Revolução francesa, o liberalismo, o socialismo a democracia, os direitos humanos, o individualismo e o capitalismo. Exatamente porque leva em consideração tanto o contexto histórico e social quanto o fato que o aristocratismo radical de Nietzsche, como crítica reacionária da modernidade, tem uma ligação em escala internacional e, portanto, não é absolutamente algo singular, Losurdo rechaça de maneira categórica a tese do “Sonderweg alemão”.

O autor rejeita igualmente sem dificuldade a construção de uma ligação imediata entre Nietzsche e Hitler (“distorção historiográfica”) e mostra a sua insustentabilidade. Ao mesmo tempo defende o filósofo György Lukács da tentativa de fazer dele o bode expiatório de uma interpretação errada de Nietzsche. Losurdo demonstra que autores não marxistas ou antimarxistas como Georges Lichtheim e Ernst Nolte estabeleceram entre Nietzsche, o nazismo e a política genocida deste último um nexo ainda mais direto do que tinham feito autores marxistas como Lukács e Hobsbawm.

Entre as passagens indubitavelmente mais grandiosas do livro de Losurdo está a leitura paralela de Nietzsche e Marx. Ambos se apresentam como críticos severos da ideologia e ambos chegam muitas vezes a observações extraordinariamente semelhantes. Por exemplo, quando no moderno operário assalariado veem não um “homem livre”, como queria a ideologia burguesa, mas um escravo. Mas o que distingue Marx de Nietzsche é o fato que este último não destrói as “flores imaginárias nas correntes” a fim de que o escravo se liberte das suas correntes, mas só para que aceite “portar correntes sem fantasia e sem consolo”, como diz uma famosa formulação do jovem Marx.

Quando, finalmente, o autor divisa em Nietzsche um “excedente teórico” que contém o potencial de uma crítica da violência e do poder, uma crítica que contrasta nitidamente com a filosofia nietzscheana mais reacionária e mais defensora da força, a arte hermenêutica de Losurdo alcança sem dúvida o seu ápice. Ele pode, por exemplo, mostrar como a apologia nietzscheana da escravidão – “não somos humanitários” – se conjuga espontaneamente com a desmistificação das práticas coloniais da sua época, daquelas práticas que sob a bandeira do universalismo, do cristianismo e dos direitos humanos representam mais a exploração, a escravidão e o etnocídio: “o que as populações selvagens recebem hoje, em primeiro lugar, dos europeus? Aguardente e cristianismo, os narcóticos europeus”. Esta crítica antecipa aquela que hoje pode ser referida ao imperialismo ocidental dos direitos humanos, como acontece no Iraque e no Afeganistão.

Com respeito a Nietzsche se poderia dizer: ex Italia lux. Depois que Giorgio Colli e Mazzino Montinari nos presentearam com a primeira edição completa de Nietzsche filologicamente confiável, Domenico Losurdo consegue convencer-nos com uma interpretação de Nietzsche coerente e brilhante, com a qual doravante todas as pesquisas sobre Nietzsche deverão deixar-se medir.

:https://docs.google.com/document/edit?id=1TNlVMmMVe3AfE3f96nmDFOeklSSPQRFEOLVWHY2Uo0c&hl=en&authkey=CIO7opwC&pli=1#