JB IDEIAS |Jornal do Brasil Sábado, 27 de março de 2010
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* Professor do departamento de filosofia da UFRJ
Biografia do pensador alemão segue a trilha da intelectualidade
nos séculos 18, 19 e parte do 20, momentos em que o moderno estava em curso Dentre
as muitas epígrafes existentes no livro Nietzsche: o rebelde aristocrata, de
Domenico Losurdo, a primeira é muito reveladora. Diz o seguinte: “Quem não o
pode reivindicar? Dize-me apenas de que precisas e te encontrarei uma citação
de Nietzsche. Pela Alemanha e contra a Alemanha, pela paz e contra a paz, pela
literatura e contra a literatura” (Tucholsky).
A biografia intelectual e o balanço crítico do filósofo
alemão serão discutidos exaustivamente nas 1105 páginas do livro. O historiador
e filósofo italiano parte da formação do pensamento de Nietzsche, seus
primeiros anos de juventude, sua judeofobia, o namoro com as idéias do
musicista Wagner, abordando depois a maturidade intelectual do autor de O
nascimento da tragédia, suas obras e a relação delas com o contexto histórico
do período, mostrando que muitas das idéias e posições assumidas pelo filósofo,
que se cristalizaram em aforismos e em outros tipos de explanações, faziam
parte do pensamento “do tempo”.
Essas ideias, na verdade, devem ser debatidas numa linha de crítica
da revolução, a não ser que
se queira descartar, com sérios prejuízos para a história do
pensamento, as obras de juventude do autor. Diante de uma intelectualidade contemporânea,
que no século 20 tendeu a citar Nietzsche e a tirar proveito de sua obra sem
lhe exigir contextualização e coerência históricopolítica, o professor italiano
apresenta com muita retidão de pensamento o tanto que é precipitada a abordagem
ahistórica e apolítica do autor.
Um outro aspecto que se impõe é o da honestidade editorial quanto
ao texto do filólogo-filósofo da Basileia. Comentando a edição “definitiva”
Sämtliche Werke, Kritische Studienausgabe, organizada por Giorgio Colli
eMazzino Montinari (Dtv-de Gruyter, München, 1980), na qual Losurdo se baseia,
cita-se Gadamer: “Muitos acreditaram que a nova edição crítica, publicada por
Colli e Montinari, provocasse um novo e decisivo enriquecimento e
aprofundamento da compreensão de Nietzsche. Ora é certamente verdade que pela
primeira vez possuímos os cadernos de apontamentos de Nietzsche em forma
criticamente segura e cronologicamente ordenada e que não dependemos mais da
redação e da seleção em que a irmã de Nietzsche e os editores sucessivos tinham
compilado os seus fragmentos póstumos, todavia é ingênuo crer que hoje, tendo o
verdadeiro Nietzsche à disposição, estejamos definitivamente livres das
preocupações que atormentaram os intérpretes anteriores”.
A seguir, continua o próprio Losurdo: “Embora bastante
precioso, o trabalho editorial de Colli e Montinari não é aquela espécie de
hermenêutica plenitudo temporum, religiosamente anunciada por intérpretes
impacientes para desembaraçar-se de perguntas inquietantes que a leitura de
Nietzsche contém. É a própria edição Colli-Montinari que confirma a presença,
num filósofo aliás extraordinariamente rico e estimulante, de motivos que hoje
não podem não suscitar ecos sinistros: celebração da eugenia e da
‘super-espécie’, teorização, por um lado, da escravidão, por outro, da
‘criação’ da ‘espécie superior dos espíritos dominadores e cesáreos’; a
invocação do ‘aniquilamento das raças decadentes’, e do ‘aniquilamento de
milhões de mal sucedidos’, afirmação da necessidade de ‘um martelo com o qual despedaçar
as raças em via de degeneração e moribundas, com o qual tirá-las do meio para
abrir o caminho para uma nova ordem vital’”. Nietzsche: o rebelde aristocrata é
divido em sete partes, possuindo ainda dois apêndices. Cada uma das partes
contém em média sete capítulos, que por sua vez se subdividem
em tópicos. Losurdo opta por uma abordagem que privilegia a
formação do pensamento histórico e político de Nietzsche, como aponta o título
do primeiro capítulo: “A crise da civilização: de Sócrates à Comuna de Paris”.
No trecho, o autor mostra que o filósofo alemão já vê em Sócrates a judeização
do pensamento grego, o que afasta a cultura helena do preceito de “grecidade trágica”
mergulhando-a numa crise a partir da concepção socrática de uma civilização que
não mais privilegia o herói, mas o homem comum e em conseqüência a
mundaneidade, que já ameaça a aristocracia. Tal concepção anunciaria a
perspectiva de igualdade, bandeira levantada pelo cristianismo, que, como
sabemos, tem raízes judaicas.
Losurdo afirma que problema de Nietzsche não era com o
judaísmo, mas, sobretudo, com a cristandade, pois esta é que faz a judeização
da cultura. O tópico mais revelador no trecho é: “O suicídio da grecidade trágica
como metáfora do suicídio do antigo regime”. É na sexta parte, no entanto, que
o livro de Losurdo se torna mais instigante. Em “No laboratório filosófico de
Nietzsche”, o professor italiano pergunta: “Por que a denúncia e a crítica da revolução
devem constituir o fio condutor da leitura de Nietzsche? De outro modo, não é
possível‘salvar’ o filósofo de sua inteireza. Quer-se ver nele o teórico de uma
crítica afiada e impiedosa da ideologia que despedaça os mitos de germanismo e do
antissemitismo? Salvo qualquer outra consideração, resta o fato de que esse
tipo de interpretação comportaria a liquidação das obras de juventude, que ecoam
temas teutômanos e judeófobos bastante difundidos na cultura do tempo e que,
todavia, são extraordinariamente fascinantes. Quer-se ver em Nietzsche o
campeão do ‘espírito livre’ e o teórico da reabilitação da carne em
contraposição ao ascetismo do Ocidente cristão? De novo somos obrigados a
cortes e renúncias dolorosas em prejuízo do discípulo de Schopenhauer, que
exprime todo o seu desprezo pela galopante ‘mundanização’, evoca com acentos
angustiados as consequências catastróficas do ‘triste crepúsculo ateu’ e
defende contra Strauss ‘o lado melhor do cristianismo’, o dos eremitas e dos
santos”. Domenico Losurdo, da mesma forma, se contrapõe aos apologetas de
Nietzsche que desejam proteger o filósofo de qualquer contaminação e revestem suas
palavras com o recurso da metáfora. Ao falar sobre aniquilamento das raças
decadentes e aniquilamento de milhões de mal sucedidos, o autor de Assim falou
Zaratustra estaria demonstrando capacidade “bastante limitada de entender e de
querer no plano político da análise histórica e política”.
Um tópico que merece muita atenção é o denominado “Nuremberg
ideológico”. As concepções filosóficas de Nietzsche como a celebração do gênio
e do super-homem, ou da necessidade da intervenção eugênica que serviram até
certo ponto de embasamento ideológico ao 3º Reich,também circularam
intensamente na cultura européia e americana do final do século 19 e, em
momento algum, nomes como o do americano Emerson e do inglês Galton são
mencionados. Talvez o extenso trabalho de Losurdo não agrade àqueles que veem
um Nietzsche idealizado, apolítico e extemporâneo, filósofo do qual apenas
retiram-se os trechos necessários ao desenvolvimentos de tiradas espetaculares para
satisfazer a vaidade de autores que se seguem. Mas o trabalho do professor
italiano se revela monumentoso não apenas em relação aos pormenores do percurso
intelectual de Nietzsche, mas também sobre a trilha seguida por toda
intelectualidade dos séculos 18, 19 e parte do 20, um momento em que a
modernidade já está em curso e que poucos são capazes de enxergar o mundo que
se anuncia.
* Professor e doutor em literatura