João Carlos Graça |
Numa das suas Considerações Intempestivas (mais exactamente, na que leva como título Da Utilidade e dos Inconvenientes da História para Vida), Nietzsche refere-se de forma depreciativa àquilo que define como atitude “epigonal” face à experiência história, a atitude característica dos que a si mesmos tendem a considerar como “últimos homens”, ou homens “pós-históricos”. A metáfora nietzscheana prolonga-se, claro, para a explanação daquilo que segundo o filósofo alemão constituiria a essência mesmo da história: um “diálogo de gigantes”, por sobre uma multidão ou um vale de anões.
A metáfora de Nietzsche é decerto tão mais merecedora de evocação quanto o filósofo “sinfonista” se enquadra decerto no grupo de autores que mais contribuíram para formatar a nossa época, caracterizada entre outros traços culturais pela hegemonia das narrativas pós-modernas… ou da Grande Narrativa da pós-modernidade. Pode mesmo defender-se que, até certo ponto precisamente graças às leituras pós-modernas de Nietzsche, a nossa época virou “performativamente” uma época de nanismo histórico, uma época que é realmente “pós-histórica” no sentido estrito em que se convenceu disso mesmo e procede de acordo com essa convicção. Em conformidade com a auto-imagem colectiva enaltecedora da sua pretensa disposição pós-moderna para o lúdico, essa época tende, porém, a assumir da “pós-historicidade” não tanto a pequenez, mas sobretudo um traço de proveito cronológico, considerando-se de alguma forma situada num vantage point de onde um juízo relativo aos méritos ou deméritos dos intervenientes nas passadas tragédias poderia ser emitido nas tais condições de imparcialidade que seriam asseguradas pela suma serenidade definidora da própria condição “epigonal”.
É impossível, de facto, ler a recensão de Cícero Araújo ao Stalin: História e Crítica de uma Lenda Negra, de Domenico Losurdo, sem que esta imagem do anão auto promovido em juiz imparcial deixe de ocorrer, tal a frequência e o carácter incisivo com que as metáforas judiciais naquela emergem. E na verdade, há que reconhecê-lo, toda a narrativa historiográfica tende a incluir, explícita ou pelo menos implicitamente, também um juízo de valor, uma apreciação crítica positiva ou negativa das res gestae, do que foi melhor ou pior levado a cabo pelos que são assumidos como objecto (ou alvo) da narrativa historiográfica. Todavia, é decerto melhor reconsiderar a noção segundo a qual, encontrando-se a história já fundamentalmente concluída, nós estaríamos de algum modo em condições de proceder a um juízo definitivo e irrevogável quanto aos de/méritos dos passados. De facto, à recomendação evangélica “não julgues, ou tu próprio serás julgado”, deveria na actividade historiográfica, segundo penso, contrapor-se a norma (de sugestão vagamente rousseuaniana, reconheço-o) “julga, sim, todavia sabendo que também tu próprio serás mais tarde ou mais cedo objecto de julgamento”.
Quem escreve estas linhas, esclareça-se entretanto, não é historiador de profissão. Quanto a isso, um traço em comum me une aliás quer a Domenico Losurdo quer a Cícero Araújo. Mas creio que todos concordaremos com facilidade que nestas matérias as divisões disciplinares são frequentemente mais um estorvo do que uma vantagem: a história é decerto demasiado importante para ser deixada a cargo dos historiadores, de resto como a economia para os economistas, a política para os politólogos, etc. Mais importante do que a questão suscitada por Araújo quanto ao facto de Losurdo ser ou não um historiador profissional, é entretanto relevante no tecer da sua narrativa o recurso à categoria de “estalinismo”. Aliás, esse facto é reconhecido pelo recenseador, que afasta de imediato, e com indisfarçável irritação, o problema de saber em que medida “Stalin o homem” foi realmente importante no desenrolar de quaisquer eventos, tendendo antes para uma posição de princípio segundo a qual o “papel do indivíduo na história” (para usar uma expressão consagrada) seria nulo ou quase, pelo menos no caso em apreço.
Assim, a questão fica decididamente centrada na tal categoria de “estalinismo”. E quanto a isso existe algo que deve de imediato ser notado, e que consiste no facto de a referida categoria ser singularmente imprecisa no seu conteúdo, para além do óbvio aspecto de ser usada quase invariavelmente de forma depreciativa, como maneira de estigmatizar (de forma aberta ou velada) um grupo ou uma corrente política determinada. Essa corrente, todavia, usa para designar a si própria a expressão “comunismo”, não “estalinismo”, pelo que o jogo de referências recíprocas, o “diálogo”, como está hoje na moda dizer, resulta evidentemente comprometido de raiz mesmo…
Quanto à categoria de comunismo, porém, e muito para além da inegável variabilidade “interna” de que mesmo esta se reveste, a maior parte das alegações de Araújo fica dramaticamente comprometida pela base. A título de ilustração, só é susceptível de ser acusado de ter atitudes discriminatórias contra determinado grupo étnico quem de facto tem. O comunismo como categoria política, como designação de determinada corrente, não inclui nada susceptível de ser posto em correspondência com “anti-semitismo”, por exemplo. Aliás, até certo ponto bem pelo contrário (recordemos o “vírus judeu bolchevique” de má memória…). Que fazer, então, tratando-se assumidamente de um acusador hostil? Desatar a apontar um caso aqui, outro caso ali, em que uma direcção assumindo-se como comunista procedeu de forma susceptível de ser acusada de anti-semitismo? O problema com essa forma de proceder é que ela, em boa verdade, garante apenas um efeito retórico imediato, e apostando estritamente nos elementos afectivos. Se analisarmos o problema no detalhe, facilmente verificaremos: 1) a factualidade alegada é ela mesma muito dúbia, isto é, existem claras divergências já mesmo quanto à identificação da “matéria de facto”; 2) ainda que tenha realmente havido abusos cometidos contra determinados indivíduos ou grupos, torna-se muito difícil provar que essa conduta teve o anti-semitismo como motivação organizadora; 3) finalmente, mesmo que provados os abusos e provada por hipótese a própria natureza xenófoba da sua motivação, restaria provar finalmente de que forma é que isso estaria relacionado com o ideário político, com o comunismo, ou com o tal de “estalinismo”, para fazer a vontade a Cícero Araújo.
E quanto a isso entramos obviamente num terreno muitíssimo escorregadio, que de resto se prolonga enquanto problema de interpretação historiográfica em múltiplas direcções. Ficam algumas referências notórias, num oceano de possíveis eventos. Ninguém duvida, por exemplo, que as tropas dos EUA fizeram o que fizeram em Hiroshima e Nagasaki, em 1945. Poderá inferir-se daí algo quanto… à democracia, dado o regime dos EUA ser formalmente democrático? À religião cívica norte-americana, ou “ideologia norte-americana”? À pessoa de Harry Truman? Sem pretender esgotar o assunto, sugiro alguns temas adicionais de reflexão. Os EUA, antes do lançamento das bombas atómicas, exigiram a rendição do Japão. Os japoneses aquiesceram em princípio, mas apenas numa rendição condicional: era necessário conservar intocável a instituição imperial, se se queria acabar imediatamente com as hostilidades. A resposta norte-americana foi que assim era no deal: rendição sem condições ou continuação da guerra. A ausência de acordo neste ponto só terminou… depois de os EUA terem lançado as duas famosas bombas. Entretanto, a seguir à rendição do Japão, Douglas MacArthur rapidamente veio a optar por manter o imperador no seu posto, enquanto factor de preservação da ordem social e das hierarquias. Ou seja, o essencial da reivindicação japonesa prévia foi satisfeito. Assim, pergunta-se: para quê a tremenda exibição de força imediatamente anterior?
Antes que o veredicto seja produzido, antes que chegue o doctor subtilissimus da historiografia capaz de deslindar este enigma, atrevo-me a propor algumas pistas de interpretação da conduta norte-americana. Primeira: tratou-se, precisamente, de uma exibição, e de uma exibição visando terceiros; do acto inaugural da guerra seguinte, a “guerra fria”. Foi uma forma, em suma, de os EUA mostrarem a toda a gente, e em especial à URSS, logo em 1945, quem é que depois da guerra ia ser the boss à escala mundial. O destinatário factual das bombas foi o Japão, mas o destinatário simbólico não: foi todo o género humano, aliás sobretudo os soviéticos. Segunda: é muito diferente dar aos japoneses aquilo que eles querem, mas formalizando isso como satisfação duma reivindicação sua, o que evidentemente sugere que eles têm verdadeiros direitos, de lhes dar o mesmo, mas apresentando-o como concessão da parte americana: não o correlato de um verdadeiro direito japonês, portanto, mas um mero gesto gracioso dos EUA. Terceira: a reabilitação da instituição imperial, tendo ocorrido num período em que o Japão ameaçava mergulhar numa enorme crise social, pelo que a eventual proclamação da república não demoraria talvez a trazer atrás de si o socialismo (o PC japonês, precisamente, andou por estes anos perto dos 20 por cento dos votos, os sindicatos tiveram uma enorme força reivindicativa), obedece a uma lógica de funcionamento do imperialismo norte-americano que tem feito este tender a apoiar-se sobretudo em poderes de índole não democrática nos países sob a sua tutela. Sendo a relação imperial entre países, e por definição mesmo, uma relação oposta à lógica democrática de procedimento, o regime que a impõe, ainda mesmo que democrático, tende assim a deslocar-se para uma exaltação apenas parcial do próprio ideário: a liberdade, sim, mas seguramente não a igualdade; a liberdade, sim, mas sobretudo a nossa liberdade (“our freedom”, como eles dizem abertamente), etc.
E é claro que podíamos continuar a especular. Todavia, para além das especulações, o que fica é o facto incontornável de várias dezenas de milhar de mortes de civis “tecnicamente” desnecessárias; e a inegável responsabilidade norte-americana por elas. Mas até mesmo isso merece uma consideração mais atenta. Como faz notar uma personagem de um filme de Kurosawa (Rapsódia de Agosto), o único grande país que nunca homenageou formal e oficialmente os mortos de Hiroshima e Nagasaki são os próprios EUA. Talvez porque isso implicasse, ou pelo menos sugerisse, o reconhecimento de um erro, quem sabe mesmo se de uma culpa… Ora, a dinâmica glorificadora da Mighty America contém inegavelmente um elemento de auto-celebração exaltada que sugere, um pouco como com o catolicismo de finais do século XIX, a proclamação da sua própria infalibilidade. O raciocínio implícito é aproximadamente este: Deus, ou a democracia, não são bons acidentalmente, são-no essencialmente, o que implica sempre; o Papa, ou os EUA, são o Seu representante inquestionável; logo, o que o Papa decide ex cathedra, ou os EUA fazem no plano da política internacional, é sempre louvável e certo, ainda mesmo quando parece não o ser. Assim, pode por exemplo a Rússia reconhecer formalmente os seus erros ou culpas na Checoslováquia ou no Afeganistão, ou onde quer que seja. Já do Papa, enquanto for Papa, não podemos esperar atitude análoga. Menos ainda evidentemente dos EUA, enquanto forem EUA…
Existem na problemática a que me refiro aspectos mais abertamente míticos. É o caso com tudo aquilo que, na percepção quase instintiva que temos das coisas, traduz propensão nossa para inocentar por princípio os EUA ou o “Ocidente”, por exemplo, e culpabilizar também por princípio a URSS, ou o comunismo, ou o “estalinismo”, ou outros “asiatismos” mais ou menos aparentáveis. Mas há também aí, por certo, aquelas dificuldades genuínas que são as de toda a historiografia e que provêm do que é a própria essência desta: interpretação sempre subjectiva, imputação de causalidade onde uma estrita relação causal não existe, mas apenas acções humanas parcialmente livres e dotadas de sentido. E volto assim ao meu problema: responsabilizar quem? Harry Truman? Os EUA? A democracia? O liberalismo? A “civilização ocidental”?...
Um outro exemplo, entre tantos possíveis: na década de 1930, tinham as forças imperiais japonesas invadido a China, as tropas de Chang-Kai-Chek, depois de terem durante muito tempo desprezado o perigo japonês (obstinadas como andavam em dar caça aos comunistas chineses), decidiram, quando finalmente se dispuseram a combater o Sol Nascente, fazer explodir uma série de diques que sustinham as águas do famoso Huang-Ho, ou Rio Amarelo. Isso, segundo sabiam os generais de Chang-Kai-Chek, teria como consequência a inundação de extensas zonas da China do norte ― mas, precisamente, era esse o efeito visado, o único que na altura, segundo terão pensado, seria capaz de suster os japoneses. Que pensar disto? Por um lado, é evidente que tal gesto pode ter retardado a progressão dos japoneses embora, claro, não a tenha de todo impedido. Mas, sobretudo, do tal rebentamento dos diques resultou de forma directa a morte de cerca de novecentos mil civis chineses. Os generais de Chang-Kai-Chek podiam ter previsto tal resultado? Na sua dimensão exacta, talvez não; mas parece difícil evitar a conclusão de que deviam por certo calcular que muita gente iria perecer em consequência do seu acto.
Imagine-se agora que os japoneses tinham ganho a guerra. Quem duvida de que existiria já hoje um livro negro do nacionalismo chinês onde tais factos seriam devidamente publicitados e mesmo bem ampliados? Se tal livro não existe é, claro (e para além do facto óbvio de que o Japão perdeu a guerra), porque consideramos indefensável a sua implicação lógica directa: a ideia de que o povo chinês seria constitucionalmente incapaz de auto-governo e, portanto, teria de ser mantido sob tutela estrangeira. Bem pelo contrário, pelo menos ao nível do discurso oficial é a ideia oposta que hoje em dia passa por verdade self evident: a da capacidade dos chineses, e de resto a de todos os povos, para o auto-governo. Entretanto, e por desconcertante contraste com isto tudo, não é certo também que até à década de 1960 a tal self evidence foi sistematicamente negada a respeito dos povos que o tal “Ocidente” mantinha sob jugo colonial? E, para ainda maior desconcerto, não será curioso notar que as duas maiores potências coloniais, a França e o Reino Unido, eram elas próprias “democracias liberais”?
Assim, podemos considerar o acto da clique de Chang-Kai-Chek um acto monstruosamente facinoroso ― e entretanto isentar de imediato desse juízo o nacionalismo chinês, que todavia o inspirou. E provavelmente é mesmo essa a atitude certa a tomar a esse respeito. Creio que também fazemos bem em isentar a democracia da brutalidade e da soberba coloniais, ou dos milhões de mortes desnecessárias que Truman, Churchill, Johnson e outros todavia sem dúvida provocaram. A minha convicção de origem, antes mesmo de ter lido o livro de Losurdo, era já evidentemente a de que seguiríamos uma via de investigação bem mais interessante procedendo de forma análoga também a respeito, por exemplo, dos possíveis crimes de Stalin, isto é, investigando-os, sim, mas deixando o ideário comunista, ou o comunismo enquanto corrente política, ou o regime soviético enquanto tal, afastados da indagação da eventuais responsabilidades ou culpas.
A leitura do livro, porém, permitiu destacar vários outros aspectos igualmente importantes, em parte aliás referidos pela recensão de Araújo. Comecemos pelo que creio ser o mais importante. Stalin chega ao poder num contexto de acosso, de pobreza, de guerra generalizada, em que para além de tudo o mais é obviamente necessário proceder a um downsizing radical das expectativas largamente messiânicas abertas pela revolução de Outubro. É óbvio que existe e vai previsivelmente continuar a existir escassez e dinheiro, poder, Estado, direito, etc. Como se comportou Stalin, como se comportou a generalidade da direcção soviética face a tudo isso? A URSS obteve a sua primeira constituição escrita em 1936, e nesta década teve uma intervenção no âmbito de Sociedade das Nações que dificilmente poderemos evitar avaliar como largamente positiva. Deixando de ser a pátria imaginária do Proletariado Global para passar a assumir-se como mais um estado entre outros no campo da Weltpolitik, a URSS “normalizou-se”, “sistematizou-se” num certo sentido, sim. Mas precisamente por isso pôde desempenhar um papel muitíssimo benéfico no forjar daquilo que viria já nos anos 40 a ser a grande coligação mundial antifascista, a coligação responsável pelo que foi talvez o momento de máxima glória de um século sem dúvida atribuladíssimo: o Maio de 1945.
Se esse papel não pôde mais cedo revelar-se produtivo, não será quanto a isso melhor indagar qual o comportamento do Ocidente no seu conjunto face aos avanços do fascismo? Losurdo destaca a conduta da França e do Reino Unido, cúmplices no desmembramento da Checoslováquia e na absorção da Áustria, a benevolência recíproca dos EUA e das potências do Eixo, os pactos estabelecidos pela Itália fascista e pela Alemanha nazi com o Vaticano, o que é geralmente conhecido, embora pudicamente evitado; mas também com as próprias organizações sionistas, o que decididamente tende hoje em dia a constituir-se em assunto de completo tabu (ao mesmo tempo que o pacto germano-soviético é pelo contrário objecto de diabolização enfática e integral). Losurdo podia talvez neste âmbito ter dado mais ênfase ao caso da guerra civil espanhola, onde a mesma conduta de miserável cumplicidade das “democracias ocidentais” com os “estados totalitários” (na altura o termo era usado de forma não depreciativa) talvez tenha atingido o seu verdadeiro esplendor. Quiçá o caso espanhol merecesse no quadro global maior destaque, aliás quando se sabe hoje em dia de fontes seguras que a ditadura oficialmente apenas “autoritária” de Franco foi de facto muito mais assassina do que o estado formalmente “totalitário” de Mussolini. Mas esse é, no contexto geral do livro de Losurdo, um reparo sem dúvida de pequena monta.
A caracterização do regime soviético no período de Stalin como “ditadura desenvolvimentista” parece bastante apropriada. Embora se tratasse de um estado visando uma democratização tão larga quanto possível, e estando sem dúvida apostado numa intensa mobilização do conjunto da população, o regime “estalinista” corresponde com facilidade ao adquirido da politologia contemporânea de que um dos traços definidores da modernidade política é a própria mobilização permanente e em massa (noção de que podem aliás ser facilmente encontrados ecos nas obras de autores tão diversos como Hannah Arendt e Karl Deutsch). Essa mobilização, note-se, tende a fazer dos estados modernos, formalmente democráticos ou não, liberais ou não, realidades muito mais “leviatanescamente” ambiciosas nas suas pretensões de controlo, e portanto tendencialmente “totalitárias”, por contraste com a natureza comparativamente fragmentária e “pluralista” de que a influência habitualmente se reveste nas formas políticas mais tradicionais. Embora a expressão usada não fosse evidentemente essa, os críticos liberais desde sempre identificaram esse traço “totalitário” avant la lettre, por exemplo, na revolução francesa.
É um facto notório que o regime soviético foi sempre monopartidário, por contraste com o multipartidarismo ostensivo dos regimes ditos “demoliberais”. Mas deve quanto a isso notar-se pelo menos que a consagração oficial dos partidos políticos enquanto realidades essenciais à formação (e não apenas à expressão) da vontade popular é algo que a politologia e o direito constitucional “ocidentais” só muito tarde reconheceram, na verdade apenas com Hans Kelsen e a república alemã de Weimar, isto é, num período posterior ao da origem do regime soviético. Algures em O Estado e a Revolução, Lenine menciona o Outubro português de 1910 e a revolução turca de Kemal Ataturk como casos falhados (mas ainda assim notáveis e dignos de referência) de construção de estados radicalmente democráticos, “num certo sentido já não-estados”, dotados de representantes políticos permanentemente amovíveis, etc., como supostamente a “ditadura do proletariado” deveria ser, ou tender a ser. Por comparação com o caso soviético, porém, a I República portuguesa, que nunca conheceu sequer o sufrágio universal masculino, muito menos evidentemente o verdadeiro sufrágio universal, faz muito triste figura, e o comentário de Lenine torna-se digno de reparo não decerto por hostilidade anti-lusitana, mas antes por excessiva generosidade apreciativa. Se a I República portuguesa teve diversos partidos (e realmente teve), há que notar entretanto também: que se tratava sobretudo de redes de ligações pessoais gravitando em torno de notabilidades; que a respectiva definição doutrinária ou programática era muito fraca; que esses eram partidos apenas facticamente reconhecidos, dado que o regime nunca se assumiu oficialmente como uma “partidocracia”, como o são conscientemente os regimes “demoliberais” post-Kelsen. Assim, a análise comparativa de regimes fica obviamente muito limitada e lesada se nos cingirmos sem contextualização ao critério algo simple minded que leva a opor acriticamente monopartidarismo a multipartidarismo. Mais ainda, é claro, se levarmos em consideração que mesmo os actuais regimes “demoliberais” são apenas na forma multipartidários, dado que a existência de dispositivos vários, como o carácter não proporcional da representação, tende a transformá-los deliberadamente em regimes de facto apenas bipartidários.
O caso soviético, porém, tem características próprias e muito peculiares, de uma modernização ocorrida de forma muitíssimo acelerada e em condições particularmente hostis, onde em geral foi necessário construir quase a partir do zero, e quase sempre improvisando e procedendo por sucessivas tentativas e erros. Todavia, a categoria de “totalitarismo” parece claramente inadequada para o definir, em tudo o que vá além dos traços acima mencionados de aplicação muito lata (e apontando, repito, para a definição da própria modernidade enquanto tal como processo de vocação eminentemente “totalitária”). Losurdo destaca o elemento de “terror a partir de baixo” de que a violência política “estalinista” se revestiu, o que é um traço que só por si merece relevo e muito mais investigação subsequente. Mas sublinha igualmente, e bem, que ao contrário do que é tantas vezes propalado o aspecto mais notório da União Soviética do período de Stalin (e poderia decerto ter acrescentado o período subsequente) é o intuito persistente, por vezes desajeitado e não raro atingindo o patético, mas geralmente merecedor de simpatia, de chegada a uma situação de “normalidade” política, na qual quer a liberdade “negativa” quer a “positiva” (para além dos plenos “direitos sociais”, obviamente) pudessem ser gozadas sem restrição ou com a mínima restrição possível pela totalidade da citizenry, o que no caso constituía obviamente toda a população.
A história real da União Soviética, sem dúvida, afastou-se de forma significativa dessa trajectória, mas mais uma vez é decerto conveniente proceder de forma comparativa quando se tem pressa em “atirar pedras aos telhados dos outros” (como aqui em Portugal dizemos). A história soviética é uma história de permanente ameaça por parte de vizinhos poderosos; de guerra aberta ou iminente, lidando sempre com uma grande desvantagem inicial e face a “interlocutores” extremamente hostis: desde a intervenção estrangeira e o cordon sanitaire iniciais até à “segunda guerra fria” e ao “Império do Mal” de Reagan, passando pela II Guerra Mundial e pelo rollback de Truman. Essa hostilidade está, de resto, superlativamente ilustrada na própria categoria cold warrior de “totalitarismo”, através da qual se intenta estabelecer uma simetria/equivalência entre a URSS de Stalin e o seu inimigo mortal e jurado, o III Reich alemão.
Vale a pena, quanto a isso, sublinhar a natureza significativamente diversa do Gulag soviético e dos campos de concentração nazis, aos quais ele é tão frequentemente equiparado. Na obra de Losurdo pode evidentemente recolher-se abundante material visando reparar essa injustiça e corrigir esse absurdo (aliás, em geral destacando a origem “ocidental” da própria instituição campo de concentração), mas eu atrevo-me a acrescentar algo mais. A ideia de substituir a prisão pelo trabalho “reeducador” é tipicamente uma ideia não dos regimes “totalitários” do século XX, mas do republicanismo europeu de finais do século XIX: pensemos por exemplo na convicção durkheimiana relativa à substituição do “direito punitivo” pelo “direito reparador”. Independentemente das apropriações cínicas posteriores, são de facto em geral os teóricos penalistas mais progressistas que menos ênfase colocam na dimensão expiatória da pena, e pelo contrário mais sublinham a importância da prevenção e da reabilitação… e reabilitação, precisamente, através do trabalho em vez do enclausuramento. Essa dimensão “cívica” dos trabalhos forçados, aliás, imbricou-se estreitamente e explicitamente com intuitos colonizadores ― e quanto a isso, reconheçamo-lo, em geral já com uma componente cínica directamente associada. “Sibéria” constitui obviamente o equivalente russo de “Austrália”, de “Guiana”, de “Angola”… Só não vê isso quem está demasiado cheio de “hubris”, de narcisismo filo-ocidental para ser de todo capaz de se enxergar.
Ora, recebendo de herança a realidade que tinha recebido, e operando nas condições em operou, que poderia de significativamente diverso ter feito a direcção soviética “estalinista”? “Sibéria” é decerto uma palavra feia, que está longe de sugerir ao leitor comum as efígies de Nicole Kidman e de Hugh Jackman. E é natural que esteja e melhor que assim continue: não se trata evidentemente de substituir uma “lenda negra” por uma “lenda branca” ou por mais um kitsch. Mas uma coisa deve ficar pelo menos clara: Um Dia na Vida de Ivan Denisovich é um título compreensivelmente evocador de sofrimento e provações; mas o seu correlato adequado não é de todo O Diário de Anne Frank. Quando muito, Papillon… mas mesmo aí com uma nuance importante: a relativa à vocação eminentemente mundial e anti-colonial do regime “estalinista”, a contrastar com o carácter vincadamente colonial e de Herrenvolk democracies assumido pelos regimes ocidentais seus contemporâneos. (Araújo é, todavia, quanto a isso injusto para com a revolução francesa, à qual considera “autenticamente europeia”, quando na verdade o élan da “humanidade comum”, que se manifestou depois plenamente nas revoluções russa e chinesa, já esteve presente também, embora de forma ainda hesitante, naquela sua antecessora.)
Mais amplamente: a direcção soviética teve de proceder a “escolhas trágicas”? É claro que teve: “os homens fazem a história, mas não nas condições por eles escolhidas…” Volvido o seu período, porém, a dimensão de imperatividade de escolhas trágicas aumentou ou diminuiu para os cidadãos soviéticos? Parece razoavelmente óbvio que diminuiu, que as “capacidades” (no sentido aproximado dessa expressão para Amartya Sen) de cada cidadão soviético e da sociedade soviética no seu conjunto ficaram bem ampliadas e a própria necessidade de escolhas trágicas radicalmente diminuída precisamente como resultado da actuação de Stalin e dos seus colaboradores directos. A história, quanto a isso, não “julgará” Stalin ou a URSS “estalinista”, diversamente do que Araújo sugere. Segundo me parece, já julgou, e de forma particularmente eloquente: basta pensar, por exemplo, no que foi a evolução da mortalidade infantil e da esperança média de vida ao longo da história da União Soviética, período “estalinista” incluído (e descontado evidentemente o factor da tremenda guerra de agressão de que foi vítima, não fautor), e compará-lo com o enorme contrafactual que foi a evolução dantesca desses indicadores no período pós-soviético, os milhões de vítimas e em geral a hecatombe civilizacional resultante da campanha de privatizações forçadas e da “transição para o mercado” do início dos anos 90, quer na Rússia, quer nas demais repúblicas.
Este género de discussões tende, compreensivelmente, a tornar-se muito extenso, e aliás demasiado extenso vai já também este texto. Assim, deve referir-se ainda que por exemplo quanto aos de/méritos de Stalin em matéria de guerra Losurdo se apoia numa obra notabilíssima e merecedora também de maior divulgação, Stalin’s Wars, de Geoffrey Roberts, a quem Araújo não poderá decerto exautorar da qualidade de historiador profissional e que reconhece plenamente a dimensão titânica do empreendimento levado a cabo e a necessidade absoluta de o ajuizar de forma equilibrada e ampla, evitando o usual viés narrow minded, quando não obstinada e declaradamente hostil por questão de princípio. Quer Roberts quer Losurdo assumem a veracidade da culpa soviética ou “estalinista” nos massacres de Katyn, mas independentemente disso e do fundo da minha ignorância devo aqui pelo menos levantar o dedo para destacar que alguns outros autores, como Grover Furr, disputam abertamente ainda hoje quanto a isso o núcleo mesmo da “matéria de facto” (ver aqui, por favor: http://chss.montclair.edu/english/furr/pol/truthaboutkatyn.html)
Aceitando a culpa de Stalin nesse evento, e aliás assumindo-o como crime em sentido estrito e gravíssimo, Losurdo destaca entretanto também quer a questão da envolvente de clear and present danger em que a direcção soviética foi forçada a tomar decisões, quer o carácter militar das vítimas, contrapondo assim adequadamente esses eventos aos massacres desnecessários de civis perpetrados, por exemplo, pelos norte-americanos na Coreia e no Vietname, no primeiro caso aliás sob chancela da ONU… É Losurdo que deve quanto a isso ser acusado de revisionismo “estalinista”, mesmo que “recauchutado”? Ou é a envolvente geral dos debates que hoje em dia se tornou demasiado hagiográfica relativamente aos supostos méritos do “Ocidente” para suportar o peso de qualquer método comparativo, mesmo que o mais tímido? Em suma: de que lado está aí, verdadeiramente, o fundamental “problema de atitude”?
Num outro plano, mas ainda mais perto de nós: se pensarmos, por exemplo, no quase milhão e meio de vítimas resultantes da invasão norte-americana do Iraque, aliás “democratização do Iraque”, a quem imputar a responsabilidade por isso? A Bush II? Ao “bushismo”? Ao “norte-americanismo”? Ao “Ocidente”? À democracia? Ao liberalismo? Ou inverteremos aí também tipicamente a narrativa, procedendo à culpabilização das vítimas, do “totalitarismo”, da loucura tirânica de Saddam, do Islão, etc.? É esse, tristemente, um exemplo entre muitos do tipo de viés perceptivo, ou mais exactamente da campanha de enorme lavagem ao cérebro a que estamos submetidos através de sucessivos preemptive strikes propagandísticos ― e depois do “fim do comunismo”, manifestamente, ainda bem mais do que antes. Neste contexto, não constitui decerto o menor dos méritos da obra de Losurdo o de fornecer um contributo decisivo para a correcção dessa entorse.
Várias outras matérias ficam evidentemente por discutir, entre elas a do reconhecimento das minorias étnicas e/ou nacionais no período de Stalin, mas Losurdo apoia-se também quanto a isso em terreno muito firme, em concreto o justamente famoso The Affirmative Action Empire de Terry Martin, que está obviamente muito longe de ser uma obra hagiográfica relativamente a Stalin ou à URSS em geral, mas constitui também, tal como o livro de Roberts, uma tentativa erudita, broad minded e em geral equilibrada. Se não é historiador profissional, há que admitir que Losurdo teve pelo menos o mérito de saber escolher bem os historiadores em quem se apoiava. Um gigante aos ombros de outros gigantes vê decerto mais amplamente: tanto assim que qualquer outro depois terá de reconhecer (como Araújo o faz, e eu próprio de seguida) que, se há acusação que em definitivo NÃO pode ser feita ao empreendimento soviético no seu conjunto, essa é a de “instintos” ou intuitos negativamente discriminatórios, quando não conspicuamente escravizadores ou “exterminacionistas”, como aqueles de que a construção das grandes nações “ocidentais” e “liberais” historicamente se revestiu no confronto com minorias autóctones ou “indígenas”. As acusações, por exemplo, de fome deliberada imposta a alguns grupos étnicos, o célebre “Holodomor” antes de todos, configuram pura e simplesmente uma calúnia e uma miserável mistificação (cf. quanto a isso, o que Annie Lacroix-Riz escreve acerca do assunto: http://www.historiographie.info/articles.html e também aqui: http://www.historiographie.info/interview.html)
Para concluir este comentário já demasiado longo, uma nota quanto à minha atitude, que espero não sofrer ela própria de demasiada inclinação “julgadora”. Cada época tem as suas dificuldades, e é naturalmente melhor que cada uma se abstenha de ser demasiado severa ou pretensiosa no julgamento das demais… mas também na eventual tendência para imitá-las. Não é demais relembrar a máxima de Francis Bacon segundo a qual os que evitam remédios novos se condenam assim a doenças novas: podemos decerto fazer do registo do passado um “mestre da vida”, mas apenas de forma limitada e parcial. E evitamos a repetição de tragédias precisamente na medida em que tratemos de as encarar da forma devida, “pela positiva”, isto é, com uma atitude fundamentalmente prospectiva, que é sempre a da vida, e que deve naturalmente ser também a do pensamento: “Pra que nossa esperança seja mais que a vingança/ Seja sempre um caminho que se deixa de herança”, como nos propõe a bela canção de Ivan Lins, que nunca é excessivo recordar: http://www.vagalume.com.br/ivan-lins/novo-tempo.html
Recensão do Cícero Araújo: http://www.revistafevereiro.com/pag.php?r=04&t=08