Lá vamos nós outra vez. Hoje toda a imprensa dita de informação abunda em detalhes truculentos sobre civis, sobre as mulheres e os bebés feitos em pedaços na Síria ― assim no-lo asseguram ― pelo regime de Bashar al Assad. Nenhuma dúvida permitida, procede-se à dissolução da memória histórica. Alguém se recorda de Timisoara? Alguém se lembra da “revolução da Cinecittà” (segundo a definição de François Fejtö) que tem lugar na Roménia a seguir à difusão da “notícia” sobre o “genocídio” verificado por encomenda naquela cidade? Um filósofo prestigiado (Giorgio Agamben) sintetizou assim os acontecimentos:
“Pela primeira vez na história da humanidade, cadáveres recém-sepultados ou alinhados nas mesas das morgues foram desenterrados à pressa de forma a simular frente às câmaras televisivas o genocídio que era suposto legitimar o novo regime. Aquilo que toda a gente via em directo como a verdade verdadeira nos monitores de televisão era a absoluta não-verdade; e, se bem que a falsificação fosse por vezes evidente, era todavia autenticada como verdadeira pelo sistema mundial dos media, para que ficasse claro que o verdadeiro já não era mais do que um momento do necessário movimento do falso”(acerca disto, cf. D. Losurdo, La non-violenza. Una storia fuori dal mito, Laterza, pp. 237-38).
E alguém se lembra do que acontece em Racak, no início da guerra que viria a culminar com a desmembramento da Jugoslávia e a instalação nessa região duma poderosa base militar norte-americana? Eis como Roberto Morozzo Della Rocca reconstrói os eventos numa revista prestigiosa como é a «Limes» (Suplemento ao nº 1, Cadernos Especiais, 1999):
“O massacre de Racak é horrorizante, com mutilações e cabeças cortadas. É uma cena ideal para suscitar a indignação da opinião pública internacional. Há qualquer coisa estanha nesta modalidade de massacre. O sérvios normalmente matam sem proceder a mutilações (...). Como a guerra da Bósnia ensina, as denúncias de maus tratos infligidos a corpos, os sinais de tortura, as decapitações, são uma arma difusa de propaganda (...). Talvez não tenham sido os sérvios que mutilaram os corpos, mas os guerrilheiros albaneses”.
O esbatimento da memória histórica é função da preparação da guerra. Obama e os seus aliados têm pressa em desencadear os bombardeamentos e impor ao presidente sírio o destino de linchamento, tortura e morte já infligido a Khadaffi.
E os quotidianos de “informação”? No “Corriere della Sera” de 13 de Março pode ler-se na primeira página: “Horror, presidente Bashar al Assad! Horror!”. Ao autor do artigo (Antonio Ferrari) faria bem ler o artigo de um colega seu (Alex de Waal), publicado no “International Herald Tribune” de 10-11 de Março. Quais as consequências dos contínuos apelos à intervenção militar? “Nos rebeldes provoca um perverso incentivo à escalada da violência étnica, de modo a provocar uma resposta militar internacional”.
Como é óbvio, este é precisamente o objectivo visado pelas chancelarias ocidentais, inquilino da Casa Branca à frente, embalado no seu cinismo pela obtenção do Prémio Nobel da Paz. Mas os outros, jornalistas ou não, que estão realmente interessados em evitar o derramamento de sangue, fariam bem em reflectir: os gritos histéricos a favor da guerra humanitária contribuem para provocar os mesmíssimos massacres que todavia aqueles declaram pretender condenar!