09 junho, 2012

Notas acerca da “Guerra Fria” : João Carlos Graça




Este texto foi suscitado pela leitura de um artigo de princípios de Abril deste ano, da autoria de Francesco Borgonovo, relativo à insurreição húngara de 1956 e à reação à mesma por parte do PCI e de meios próximos, e bem assim de um escrito já de 1996 de Domenico Losurdo, republicado por Stefano Azzarà a título de contextualização e como resposta a Borgonovo (cf. o artigo de Borgonovo e também o texto de 1996 de Domenico Losurdo; a primeira versão deste meu texto, em inglês, saiu no blogue de Losurdo
Deve começar-se por registar que o texto de Borgonovo é decerto interessante, mas não tanto pelo conjunto de teses subjacente, as quais representam na verdade muito pouco mais do que o habitual blablabla “ocidental” acerca deste grupo de assuntos, antes pelas especificidades nacionais italianas que, duma perspetiva portuguesa, se tornam dignas de nota: antes de mais o cuidado evidenciado 56 anos depois a respeito do que foi em 1956 a conduta do antigo compagno Giorgio Napolitano, relativamente ao qual Borgonovo exibe o esperável zelo no controlo do desempenho de um pentito entrementes alcandorado à posição de chefe de estado, mas obviamente nunca longe do escrutínio dos radares inquisitoriais, dada a sua inultrapassável condição de “having ever been” um de “eles”…
Quanto a outros casos individuais, menção é devida também a Maria Antonietta Macciocchi, de facto praticamente desconhecida em terras lusitanas, exceto talvez pelo seu prefácio a uma edição de escritos de Pier Paolo Pasolini em finais dos anos 70: oficialmente muito de esquerda, mas acirradamente anti-PCI, acusando mesmo os círculos dirigentes deste partido de terem moralmente assassinado o autor de O PCI aos jovens antes de ele ter sido efetivamente assassinado… tudo isto, é claro, pelo menos antes de “ulteriori polemiche per la sua «conversione» da apologeta di Mao ad ammiratrice del Papa”.
Quanto a Italo Calvino, creio serem dignas de nota as diferenças entre as apresentações do autor a que se procedia nas primeiras edições da sua obra (O Atalho dos Ninho de Aranha e a inesquecível trilogia de Os Nossos Antepassados), ocorridas em finais dos 60s e princípios dos 70s, o passado de partigiano sendo aí destacado e a secessão de 56 completamente ignorada, e as apresentações típicas das reedições dos finais dos 80s e princípios dos 90s, em que se passa “como cão por vinha vindimada” pela militância no PCI e a saída de 1956 é por contraste sublinhada e enaltecida, Calvino sendo pintado como autor politicamente correto e “anti-totalitário”, com a tonalidade “la vida es sueño” dos seus escritos constituída em alvo de largos encómios: um caso claríssimo de reconstrução ou reinvenção da memória coletiva, portanto, de facto talvez um dos mais flagrantes que me ocorrem.
Finalmente, uma referência é devida também a Sandro Pertini: decididamente um socialista duma variedade completamente inexistente em Portugal, sem dúvida uma notabilíssima avis rara… embora se perceba facilmente que de qualquer modo se tratava aqui duma espécie em vias de extinção, mesmo em Itália, e já por estes anos.
Quanto à substância da questão, deixo duas ou três observações. A primeira é que, sim, os países da Europa oriental realmente gozaram, entre 1945 e 1989, apenas aquela variedade de soberania a que já se chamou “soberania limitada”. Brejnev podia decerto padecer de várias limitações (quer como pessoa quer como dirigente político), mas decididamente não foi um “momentâneo lapso de razão”, talvez antes um “momentâneo lapso de hipocrisia”, aquilo que o levou a formular abertamente a teoria tornada infame da tal “soberania limitada”.
Todavia, essa é evidentemente uma espada de dois gumes. Será que os países da Europa ocidental alguma vez gozaram mais do que esse mesma condição depois de 1945… ou, noutros termos: “olha quem fala!” Já nem me refiro, note-se, à queda na situação de meros protetorados de facto do FMI, que é a que hoje em dia corresponde a países outrora independentes, como a Grécia ou Portugal — e isso para lá da submissão generalizada dos estados da Europa ocidental ao projeto de auto-colonização coletiva consubstanciado no condomínio autoritário do “Euro realmente existente”. Para além disso tudo, consideremos, entre tantos outros aspetos, as famosas discussões de tempos passados relativas ao beneplácito norte-americano, ou ausência dele, à eventual participação dos PCs nos governos da Europa ocidental, e a própria importância de que este assunto se podia de imediato revestir nos debates políticos. Os EUA, na verdade, foram capazes de obter um consenso, ou consentimento, capaz de fazer o seu poder (potestas / Macht) assumir características de verdadeira dominação, ou autoridade (auctoritas / Herrschaft) relativamente à Europa ocidental, e a um nível com o qual os soviéticos puderam apenas sonhar no respeitante à Europa oriental. Mas esse diferença expressa o núcleo lógico do que foi a inegável assimetria das situações. Tudo o resto não passa de falatório e divertissement.
Agora bem, quais eram os verdadeiros propósitos dos soviéticos no respeitante à Europa oriental depois de 1945? Tal como apontado claramente no texto de 1996 de Losurdo, aqueles consistiam basicamente na construção de um “cordão sanitário” invertido. Os soviéticos nunca tiveram a intenção, o interesse ou a motivação de ameaçar o Ocidente. Nunca o quiseram. Essa sempre foi A GRANDE MENTIRA não do lado “deles”, mas do “nosso”; a razão de ser oficial da NATO; a quintessência mesmo da mistificação ocidental. Ah, mas então — e agora em variante trotskista da acusação — eles não pretendiam “exportar” o socialismo, e nesse sentido eram traidores? Na verdade, reconheça-se, não pretendiam. Mas o socialismo, de qualquer forma, também não é coisa para ser “exportada”. A famosa máxima de Robespierre, advertindo contra a pretensão de “exportar” a democracia ou a república (“não há nada pior do que os missionários armados…”), permanece válida também quanto ao socialismo; e os soviéticos, quanto a isso, procederam basicamente da forma acertada.
Em certos casos, porém, é necessário reconhecer as intrínsecas dificuldades e complexidades dos problemas. A URSS sempre almejou alguma forma de “Finlandização” ou “Austrianização” de toda a Europa central e oriental, isso é bastante óbvio. Não é necessário, quanto a esse assunto, grande esforço de imaginação construindo contrafactuais; na verdade basta seguir os trilhos da realidade factual. Logo depois de 1945, quer Berlim quer Viena estavam sob ocupação militar do Exército Vermelho. Depois de os aliados terem consensualmente decidido a divisão do Reich naquilo que viria a ser a Alemanha e no que seria a Áustria (ou noutros termos, depois de ter sido de novo instituído aquilo a que talvez possamos apropriadamente chamar a “RDA de 1918”), e tendo-se de seguida procedido à partilha em 4 de cada um desses territórios, colocou-se de imediato a questão: retirarão ou não os soviéticos? A resposta da factualidade é razoavelmente clara: sim, no caso de o país unificado permanecer militarmente neutro (caso da Áustria). Não, no caso de ele alinhar com o Ocidente, ou mais exatamente com a NATO (caso da Alemanha).
Podemos evidentemente conjeturar sobre o que poderia ou deveria alternativamente ter sido feito por Moscovo, mas uma coisa permanece clara: desistir do “filho não desejado de Stalin”, como a RDA já foi designada de forma certeira, não teria sido suficiente para fazer a Alemanha permanecer neutral. A “cortina de ferro” ter-se-ia deslocado umas centenas de quilómetros para leste… mas a sua instauração não teria sido evitada. Essa eventualidade também teria significado que a primazia soviética na “corrida a Berlim”, em 1945, teria constituído uma vitória flagrantemente pírrica ou mancata. E também teria implicado que a opinião alemã radical, na verdade predominantemente comunista, se teria provavelmente sentido traída, se não mesmo “apunhalada pelas costas” pela URSS…
De facto, este constitui outro elemento não desprezível de todas estas polémicas: em 1945 havia um importante sector partisan, ou mesmo abertamente comunista, na opinião pública de todos estes países, desde o que viria a ser a RDA até à Bulgária, o que era em parte o resultado de a maioria destes estados ter sido aliada do Eixo, participando voluntária e entusiasticamente na “defesa da civilização cristã e ocidental” na frente leste (Hungria, Finlândia, Roménia, Croácia), ou ter sido absorvida pela expansão fosse do Reich (Chéquia, Sérvia), fosse da Itália (Albânia). Em qualquer dos casos, a resistência comunista tinha sido importantíssima praticamente em todo o lado. Assim sendo, não admira que a URSS estivesse relutante em retirar: quer por razões militares (o tal “cordão sanitário” invertido), quer por razões políticas: o facto de os comunistas serem muito fortes in situ. Mais uma vez, e como um contrafactual facilmente fornecido pela realidade, basta pensar nos tremendos problemas associados à tortuosíssima absorção da Grécia pelo “Mundo Livre”.
Repito que um acordo garantindo a neutralidade militar teria sido facilmente alcançado post-1945, no caso de o Ocidente estar disposto a aceitá-lo: basicamente um cenário “Finlandês”. Não é necessário imaginar muito. De novo, o “cherchez-la-femme” da conduta soviética é facilmente enunciável: neutralidade militar. Se seguirmos os trilhos da factualidade comparando os casos (realmente análogos quanto a tantos outros aspetos) da Hungria e da Finlândia, penso que realmente poderemos concluir com facilidade que, tal como apontado no escrito de Losurdo, os húngaros tiveram de facto plenas razões para se sentirem atraiçoados pelo Ocidente. Em boa verdade, quer eles quer em geral o “Rest” podem no fundamental agradecer ao “West” o facto de não terem sido bafejados por uma fortuna “finlandesa” logo depois de 1945…
Mas será a “Finlandização” de todo um objetivo político aceitável para a esquerda, ou constituirá ela uma traição aos ideais do socialismo? Bem, quanto a isso eu tenho a declarar, com o devido pedido de escusa apresentado aos meus amigos trotskistas, que não me importaria de viver num país neutral, tendo um regime multipartidário desde 1945, ausência de guerra civil, um partido comunista nativo no terreno, por vezes mesmo no governo, gozando os benefícios de um robusto “estado social”… Ah, mas é claro que tudo isso está hoje em dia sujeito a um processo de desmantelamento em todo o lado, de resto sempre em nome da “liberdade”, e por isso… Talvez seja realmente melhor os europeus olharem para a Grécia ou para Portugal (um país afincadamente “cristão e ocidental”, Cruzado até ao tutano, sempre e inquestionavelmente livre do Papão russo) se quiserem ter uma sugestão daquilo que pode vir a ser o seu futuro. Nem pensar em qualquer “Finlandização”, e agora menos que nunca.
De facto, quando o moçambicano-laurentino Ruy Guerra escreveu meio ironicamente que “Ai esta terra ainda vai cumprir seu Ideal/ Ainda vai tornar-se um imenso Portugal”, que depois o carioca Chico Buarque musicou na famosíssima canção, estaria provavelmente longe de pensar em José Manuel Durão Barroso enquanto presidente da Comissão Europeia, muito menos numa “Portugalização” do conjunto da Europa, mais provavelmente no oposto disso, ou seja, o cenário correspondente ao mito da “jangada de pedra”. Mas daí, por outro lado, não há dúvidas de que a História se caracteriza pela sua célebre “heterogénese de finalidades”…
Todavia, temos de evitar ficar obcecados ou hipnotizados pela “velha Europa”. Se levantarmos os olhos deste quadro geográfico apertado (com as suas zonas de aparente “simetria” de apreciação, sim, ao lado das outras que já descobrimos decididamente assimétricas), como poderemos julgar a influência soviética agora à escala global? É claro que, tal como Losurdo regista, a URSS nunca deveria ter tido uma atitude “paternalista” ou de “irmão mais velho” para com os chineses, erro esse pelo qual viria aliás mais tarde a pagar, e tão caro. Mas, registo-o eu agora, tão-pouco os chineses deveriam ter apoiado os EUA à escala mundial contra a URSS, pelo menos na medida em que apoiaram: Angola e Namíbia, Camboja e Vietnam, Afeganistão e Paquistão, etc. Estes são, todavia, reconhecidamente assuntos complexos, com os quais é aliás ainda hoje em dia difícil lidar.
Deve um “Grande Irmão” socialista ajudar outros, ou induzi-los a seguir um trilho semelhante ao seu? Em termos gerais é presumível que tenha essa tentação, mas sim, os chineses em 1956 também tinham razão ao lembrarem o quanto este é um assunto com o qual se deve lidar com um cuidado extremo, porque na verdade a linha separando a “ajuda” da “ingerência” é uma linha extremamente fina e por vezes quase impercetível. Mais exatamente: depois de terem, sob a direção de Stalin, justamente descartado a originária ideia bolchevique de serem a pátria do Proletariado Global, tendo começado a lidar com propósitos mais exequíveis, os soviéticos ainda assim mantiveram compreensivelmente a tendência para pensarem em todos os países outrora englobados no Império Russo como áreas da sua extensão “natural”, ou pelo menos influência. Não admira, pois, o imediato atrito com a Polónia e com a Finlândia.
Aliás, estes são casos em que se pode compreender o quão intrinsecamente difícil é conseguir evitar ser “preso por ter cão” e simultaneamente ser “preso por não ter”… Agredir militarmente um país está errado, claro, seja qual for a causa invocada. Mas onde fica a linha em que acaba a “legítima defesa” e começa a verdadeira agressão? A Polónia tornada independente em 1918, recordemo-lo, foi uma estado muitíssimo agressivamente anticomunista e antissoviético, penetrando aliás as suas tropas em direção a leste, até Kiev. Deverão os soviéticos então, quando a maré se inverte, saber parar… onde exatamente? Na chamada “linha Curzon”? E será aceitável fazer nesse caso as pazes, garantindo-lhe assim a sobrevivência, com um regime que constitui a repressão dos rojos polacos em sua razão de ser principal? O mesmo é, no fundamental, válido também para a Finlândia. Se é verdade que a União Soviética fez bem em ajudar os rojos espanhóis em 1936-39, como poderia ela, então, ter deixado cair sem hesitar e sem pestanejar os rojos polacos ou finlandeses, a quem os regimes desse estados condenavam à repressão e à clandestinidade, se não mesmo à guerra civil larvar e em situação de imensa desvantagem?
Tão-pouco é verdadeiramente para admirar a “absorção” pela URSS dos três “estados bálticos”, embora nestes casos diversas razões atendíveis muito provavelmente assistam as diversas partes em conflito. E mantenhamos bem presente que esses problemas permaneceram em boa medida por resolver até aos nossos dias, já com uma Rússia não socialista no terreno. E reconheçamos também o quão marcadamente propensa à demência tem sido a atitude predominante das elites políticas dos “países bálticos” nos tempos mais próximos de nós.
Em termos gerais, penso poder dizer que a recente atitude revanchista dos países da Europa oriental, a sua obsessiva mistura de hostilidade e arrogância face à Rússia, o seu alinhamento reles com a NATO, o seu permanente “não se esqueçam de que também somos europeus!”, ou mais singelamente a sua grosseira subserviência ou postura de lacaios face a tudo o que mesmo vagamente cheire a “Ocidente”, com a Polónia, por exemplo, apressando-se a reassumir os seus antigos vícios de chacal, agora cooperando de forma entusiástica com os EUA na “libertação” do Iraque — tudo isso parece basicamente constituir uma monumental vindicta do que foi a posição oficial soviética durante o período de 1945-90.
O que, entretanto, continua inquestionável é o simples facto de que estes países permaneceram em trajetória de catching up com o Ocidente em tudo o que são índices de desenvolvimento económico e social precisamente durante o período em que estiveram sob a tutela do Urso soviético — convergência clara até meados ou finais da década de 70, com problemas emergindo nesta altura, mas continuando a existir crescimento económico, se bem que mais lento —, tendo depois disso voltado a ficar consideravelmente atrasados, com brutal perda de posições quer em termos relativos quer mesmo em termos absolutos: e isso precisamente quando foram autorizados a “Go West” em alinhamentos político-militares… Dito de outra forma: quando aquilo que tinha sido o multissecular sonho húmido das elites alemãs, relativo à possibilidade de obter reservas de Arbeit a Leste, foi finalmente realizado, e por meio de servidão voluntária e em massa.
Entretanto, e face ao problema de saber porque é que tantas vezes as nações tendem a manter entre si relações masoquistas de dominação, eu tenho de confessar humildemente a minha ignorância fundamental. Devem as nações ser autorizadas a prosseguir nesse trilho? Quanto a isso parece-me claro que sim, desde que haja a garantia de que realmente se trata de consenting adults… Mas em todo o caso, e em particular levando em consideração o facto de que o colonialismo português já foi explicitamente proclamado, e de forma pretendendo-se academicamente respeitável, como um “imperialismo não-económico” (embora essa seja evidentemente uma tese muito discutível, para dizer o mínimo), creio que, por contraste, deve ser objeto duma menção explícita o carácter inquestionavelmente benevolente do Imperium económico do Urso soviético.
As razões que levaram ao colapso do “socialismo real” permanecem ainda, reconheço-o, largamente terra incógnita para a investigação socio-histórica. Mas algumas verdades firmes podem e devem, a esse respeito, ir sendo em todo o caso enunciadas. Tal como logo em princípios da década de 90 agudamente notaram Iván Szelényi e Lawrence P. King (Post-Communist Economic Systems in “The Handbook of Economic Sociology”, Neil J. Smelser & Richard Swedberg, Eds., Princeton, New Jersey, Russell Sage Foundation, 1994), se há algo que deve antes mais reter-se é que o “socialismo real” não caiu em consequência direta de um falhanço económico, devendo pois um materialismo económico grosseiramente determinista ser desde logo posto de parte na avaliação desse assunto. Aliás, em grande medida terá sido precisamente o rápido catching up das primeiras décadas pós-45, com todos os processos associados (extensão rápida da esperança média de vida, redução fulgurante da mortalidade infantil, urbanização, industrialização e terciarização aceleradas, alfabetização universal e aumento enorme do nível médio de instrução, bem como da qualidade da saúde pública) a fazer disparar um conjunto de expectativas que, ficando frustradas no plano da participação política, e face ao relativo impasse económico dos finais dos anos 70s, induziram a alienação da lealdade ao regime, primeiro, das “novas classes médias”, ou da nova e numerosa intelligentsia, ao que, numa sociedade de ambiente cultural geral eminentemente democrático e igualitário — igualdade formal e real de oportunidades, grande mobilidade social quer intra quer inter-geracional — se seguiu rapidamente a erosão da lealdade também da restante população. Em todo o caso, e como nota acertadamente Luciano Canfora em I “Nuovi Ricchi” non Sono Sbarcati da Marte (na “Critica della Retorica Democratica”, Laterza, Roma-Bari, 2002), contra a celebérrima tese de Milovan Djilas relativa à nomenklatura pode argumentar-se que esse grupo social foi, no fundamental, não um grupo predatório do progresso social global, mas um auxiliar importante da promoção daquele. Foi precisamente quando a nomenklatura enquanto tal deixou de existir, passando o seu lugar a ser ocupado pelas novas “oligarquias”, ou “burguesias compradoras”, isto é, quando o sistema no seu conjunto deixou de ser socialista, que o fim do progresso e na verdade o enorme colapso civilizacional ocorreu na Europa oriental e nas repúblicas da ex-URSS.    
Mas de novo: evitemos ficar hipnotizados pela “velha Europa”. Se pensarmos noutras intervenções soviéticas no estrangeiro, referência imediata é devida ao Afeganistão, evidentemente; mas também, seja-me permitido acrescentar, a Angola. Quanto a isso, sublinhemos antes de mais que os soviéticos não “invadiram” o Afeganistão, ao contrário do que tanto se repete, aliás tal como tão-pouco os norte-americanos “invadiram” o Vietname do Sul. Ambas as grandes potências intervieram a favor de um aliado, a pedido de governos de países formalmente independentes, e de facto dotados um e outro de algum grau de autonomia. Mas à URSS devem, segundo creio, ser reconhecidas circunstâncias claramente atenuantes vizinhança próxima do país “intervencionado”, carácter inquestionavelmente endógeno do movimento afegão visando o socialismo, o qual explicitamente solicitou a ajuda do “Grande Irmão” — as quais estão de todo ausentes no caso da intervenção dos EUA no Vietname. Aqui, foram os norte-americanos eles próprios que desde o princípio procuraram obsessivamente intervir, substituindo-se à potência colonial retirante, a França, e de acordo com uma lógica segundo a qual obviamente as demais potências não poderiam ter “esferas de influência” distintas… porque a “esfera de influência” dos próprios EUA era assumidamente o globo inteiro, não importando pois quão longínquo pudesse ficar o teatro de operações! De novo, e se se apreciar o sarcasmo, uma certa variedade do “nihil humanum a me alinum puto”, mas sofrendo também aqui uma enorme “heterogénese de finalidades” relativamente ao sentido da expressão na obra de Terêncio… Sarcasmos à parte, reconheça-se em todo o caso que, mesmo depois de Gorbatchev ter decidido pela retirada das tropas, a fação afegã pró-soviética permaneceu no poder em Kabul por um considerável lapso de tempo, e de facto acabou por capitular sobretudo em face da dissolução da própria URSS, ao passo que, por contraste, as últimas tropas norte-americanas em Saigão acabaram saindo de supetão, sendo retiradas de telhados, e com recurso a helicópteros…
Estes factos são todavia insuficientes para garantir à URSS um veredicto de “inocente”, mesmo em conjunto com o programa global de desenvolvimento, democratização e secularização que caracterizou o “danado” período pró-soviético na história do Afeganistão? Bem, talvez… mas ainda assim deve em todo o caso referir-se que, se Israel Shamir mencionou a história da União Soviética tardia apelidando-a explicitamente de “os nossos felizes dias passados” (Our happy bygone days), eu não posso impedir-me de pensar que, do ponto de vista do “afegão médio” — se se admitir que a categoria faz algum sentido falando sociológica ou socio-historicamente — esse sentimento e essas palavras são ainda muito mais verdadeiras e apropriadas.
Por óbvio contraste com o Afeganistão (relativamente ao qual, é verdade, uma lógica de Vae victis! tenderá tarde ou cedo a impor-se), temos evidentemente o caso de Angola. Não houve aqui uma intervenção direta da URSS, mas inquestionavelmente uma de Cuba, aliás fundamentalmente baseada em voluntariado, o que sem dúvida contribuiu para permitir que permanecesse envolta numa aura de “Brigadas Internacionais”. Descolonização consumada, a guerra civil não tardou a instalar-se, com duas fações combatentes apoiadas pelo “Mundo Livre” (a FNLA e a UNITA), enquanto a “Maligna Moscovo” apoiava a terceira, o que veio a ser o partido vencedor, o MPLA. A transição para o socialismo através do chamado “poder popular” (de facto, um regime de partido único) ficou bloqueada, tendo-se transitado para um regime multipartidário, realizando-se eleições que foram ganhas pelo mesmo MPLA. O fair-play político da UNITA não demorou a revelar-se, tendo os respetivos “freedom fighters” rapidamente optado pelo adeus à paz e o regresso às armas… e acabando tudo, como se sabe, volvidos vários anos e depois de muita sabotagem, muito terrorismo e muita atrocidade, com a morte de Jonas Savimbi: uma morte em combate, registemo-lo, verdadeiramente digna do “senhor da guerra” que Savimbi sempre foi, sem que quaisquer rituais de enforcamento, castração, linchamento e afins tenham sido considerados necessário pelos vencedores.
Através de amnistia concedida aos membros “não-violentos” da UNITA, legalização dos que optaram pela vida política normal e tratamento humano das “guerrilhas” derrotadas — para além, naturalmente, de algum montante de dinheiro envolvido visando lubrificar um certo número de realinhamentos políticos, o que entre outras coisas incluiu ofertas aos vencidos de participação subalterna no governo nacional e em diversos governos regionais —, quer o partido quer o presidente, da fação outrora pró-Moscovo garantiram até aos nossos dias uma ascendência hegemónica praticamente incontestada; evidentemente, permeada com as costumeiras acusações de proveniência ocidental: corrupção, abusos, pretensa falta de respeito pelos direitos humanos e todo o demais habitual mumbo jumbo político do “Ocidente”. Em Portugal, registemo-lo, a “causa” tem ao longo das décadas encontrado um campeão no Partido Socialista, aliás por contraste com a abordagem assumidamente mais “pragmática” que caracteriza a direita oficial: recordemos que, logo aquando da proclamação da República Popular de Angola em Novembro de 1975, o governo português demorou imenso tempo a proceder ao reconhecimento formal daquela, tendo fielmente esperado por “luz verde” por parte dos norte-americanos, para só então proceder visando o estabelecimento oficial de relações diplomáticas. Mas hoje em dia, deve acrescentar-se, tem cada vez mais vindo a ser o Bloco de Esquerda a “carregar o fardo” de número um da “defesa dos direitos humanos”, ocupando o cargo de verdadeiro campeão da “causa”.
O Bloco de Esquerda, porém, estaria infelizmente impossibilitado de desempenhar o honroso papel de vigilante e monitor “não-económico” da situação dos direitos humanos em Angola, que hoje em dia tão galhardamente se atribui, se não se tivesse verificado o facto de o MPLA ter ganho a decisiva confrontação militar do Cuito Cuanavale em 1977-78, em boa medida graças à intervenção soviética indireta, ou através da proxy cubana. Esta pequena Estalinegrado da África Austral constitui, de facto, um evento muito mais “gerador-de-história” do que habitualmente se reconhece. E não admira que assim seja. Convém não esquecer que os vencedores regionais foram também os perdedores globais… os quais aliás viraram basicamente cooptados globais, e em vários graus e tonalidades. Mas podemos, isso sim, ter a certeza de que, sem o desfecho do Cuito Cuanavale, não teria havido o triunfo que houve do “não-violento” Nelson Mandela, que a “implosão” dos regimes de supremacia branca em toda a região não teria ocorrido da forma pacífica que oficialmente assumiu.
De novo, e como sugestão de contrafactual, comparemos a história da dissolução da outrora White South Africa, ou respetiva evolução para África do Sul não racial, com o outro caso de Herrenvolk democracy sobrevivente ao fim da URSS e da “guerra fria”: Israel. É verdade que, como já se argumentou mais de uma vez, enquanto o “povo eleito” da África Austral sempre precisou dos nativos para trabalhar, pelo que se tendeu a submetê-los e escravizá-los de facto, mas não a exterminá-los, já com Israel a dependência dos nativos sempre foi menor e correlativamente a inclinação para o extermínio daqueles tornou-se mais acentuada (ver aqui, sff, o artigo de 2001 de Perry Anderson na NLR). Digamos que, se na África do Sul estamos perante o tradicional “Negro problem”, já no caso dos palestinianos a proximidade é maior com o clássico destino dos índios, ou peles-vermelhas: “the only good red…” Todavia, mesmo essas diferenças devem ser relativizadas, tendo em conta o quanto estiveram próximas, em finais do século XIX, as perceções dominantes da chamada “questão judaica”, ou “semita”, e da “questão negra”, ou “hamita”: sem isso, evidentemente, nunca teria havido comunidades humanas a imaginar-se ou inventar-se simultaneamente como escravizadas e como “hebraicas”; nunca teria havido, por exemplo, “coro dos escravos hebreus”… Pelo que, sublinho-o agora, os dois tipos ideias referidos devem ser tomados apenas enquanto tal, enquanto meros tipos ideias, evitando referi-los a 100 por cento seja ao caso da White South Africa, seja ao de Israel. Na verdade, mais do que diferenças de pretensa índole “cultural”, talvez tenha sido esta a diferença factual fundamental, que permitiu resgatar às populações do sul de África, mas não aos palestinianos: a influência (embora apenas indireta) da União Soviética tornou-se em determinada altura predominante no caso africano, mas não no Médio Oriente, não no caso da Palestina.     
Mas eu tendo decididamente a falar demais. Tudo isto, evidentemente, visa apenas fornecer uma amostra da complexidade, se não mesmo sinuosidade, de que se revestem todos estes assuntos. O caso do Camboja, com a intervenção direta do Vietname a ser suportada pela URSS contra a “coalition of the willing” composta por EUA, China e Khmers Vermelhos, constitui um feixe de assuntos ainda muito mais complexo, pelo que é melhor deixar o assunto provisoriamente de lado.
As lições de todos estes eventos são, creio, múltiplas e multifacetadas. Mesmo sem pretender ser demasiado cínico, penso poder dizer que as intervenções através de proxies constituem geralmente uma via recomendável. Tenho a firme convicção de que os norte-americanos mantiveram isso bem em mente a respeito, por exemplo, dos recentes casos da Líbia e da Síria. Por outro lado, um golpe “nativo” é quase sempre melhor do que uma intervenção direta e explícita: estou seguro de que os soviéticos aprenderam com a conduta norte-americana no Chile, em 1973, quando eles próprios tiveram em 1981 de lidar com a Polónia. E daí, por outro lado, é melhor evitar as generalizações demasiado apressadas. Se pensarmos na Rússia pós-soviética, é óbvio que os casso da Ossétia do Norte e da Abkházia constituem, por contraste com o Afeganistão, casos gritantes de intervenção militar estrangeira… mas isso não impediu os as tropas russos de serem recebidas como libertadoras pelos povos diretamente em causa, pois não?
De facto, penso que tende aqui a emergir um problema de ordem mais geral, o qual constitui o fulcro daquilo que é habitualmente designado por “questão nacional” e desemboca, finalmente, no famoso “direito de secessão”. Tipicamente, a revolução francesa recusou reconhecer este, pelo que nenhuma “Vendeia” foi alguma vez autorizada a fazer secessão, enquanto por contraste a revolução soviética procedeu ao reconhecimento formal desse direito, embora compreensivelmente tenha em geral tendido a sonegar de facto o respetivo gozo. O problema, aqui, está evidentemente onde colocar o limiar de decisão. A Geórgia tem o direito de se separar da URSS? Tudo bem com isso, mas nesse caso, porque não depois a Abkházia ou a Ossétia do Norte relativamente à própria Geórgia? Esta foi, como se sabe, uma variedade de assuntos muito discutidos a respeito da defunta Jugoslávia… e eu penso que há muitos problemas teóricos e práticos deixados aí enterrados, os quais tenderão mais tarde ou mais cedo a deixar de estar underground, voltando a emergir para se imporem à nossa consideração atenta no futuro, mais cedo ou mais tarde.
O ideário comunista oficial, ou mais vastamente o marxismo, estiveram e estão habitualmente mal preparados para lidarem com este tipo de problemas, é verdade… ah, mas de resto isso é verdade para o pensamento político em geral. Nenhum país lida bem com a secessão, tal como nenhum país lida bem com a intervenção militar estrangeira direta, isso é dado adquirido. Mas acho não existe outra maneira plausível de pensar a vida política, senão assumindo-a como expressão de um “referendo interminável”, uma reativação permanente do “contrato social” imaginário, ou conjuratio, que cada sociedade secularizada e democrática tende a assumir como fundamento de si própria. Quanto às relações internacionais, as tendências para os abusos devem sempre ser identificadas e contidas, mas é decididamente melhor não nutrir ilusões quanto ao seu completo desaparecimento. Em todo o caso, o preceituário da Carta da ONU segundo o qual as nações devem ter a possibilidade de exercício consciente e deliberado das opções referentes à sua existência — ou, noutros termos, de autodeterminação — é em definitivo algo a salvaguardar, e por contraste a famigerada “R2P”, ou “responsabilidade de proteger”, é algo a pôr resolutamente de lado, como simples expressão duma repugnante arrogância imperial “Ocidental”.
O mundo encontrava-se claramente mais perto deste desiderato quando a URSS existia, isso está para além de qualquer dúvida razoável. Mas agora é sobretudo altura para olhar para o futuro. Não direi, parafraseando Irving Berlin, que “God bless the BRICS, my only hope”, dado que definitivamente não sou uma pessoa religiosa (pelo menos em sentido estrito, talvez seja “religioso” num sentido muito lato, “durkheimiano”). Mas, uma vez isso assumido…
Saudações cordiais.
Lisboa, 10 de Junho de 2012
João Carlos Graça