Domenico
Losurdo: Os EUA, o pivô antichinês e os perigos de guerra
25 de fevereiro de
2016
Tradução de Marcos Aurélio
Silva. Prof. dos cursos de graduação e pós-graduação em geografia da UFSC.
A China representa mesmo uma ameaça geopolítica para os Estados Unidos e
os países que com ela fazem limite na região do Pacífico? Publicamos a seguir
um excerto do livro de Domenico Losurdo, La Sinistra
assente: crisi, società dello spettacolo, guerra (Carocci, 2014), que analisa algumas
questões da assim chamada “ameaça chinesa”.
O pivô asiático*
O “pivô” é frequentemente apresentado no Ocidente como uma resposta à
“ameaça” proveniente de Pequim. Não há dúvida que com a ascensão ou, mais
exatamente, com o retorno da China, depois do fim do “século das humilhações”,
e com o avanço do processo de maturação da República Popular, o quadro
internacional está mudando de modo radical. Em março de 1949 o general
estadunidense MacArthur podia constatar satisfeito: “agora o Pacífico tornou-se
um lago Anglo-saxão” (Kissinger, 2011, p. 125). Dadas as relações de força
existentes, os EUA podiam ter esperanças de bloquear com suas intervenções a
chegada ao poder do partido comunista e de Mao Tsé-Tung; a esperança tornou-se
rapidamente desilusão e em Washington, em meio a furiosas polêmicas, se
desencadeava a caça ao responsável pela “perda” do grande país asiático.
Por Domenico Losurdo**
O pacífico não era mais em sentido estrito “um lago Anglo-saxão” mas,
como sabemos, ainda ao cabo da Guerra Fria os Estados Unidos violavam sem
dificuldade o espaço aéreo e marítimo chinês. Eram os anos em que a
superpotência já solitária buscava consolidar e tornar permanente e inabalável
a sua já clara superioridade militar mediante a Revolution in Military Affairs. Esta conhecia o seu
batismo de fogo no curso da primeira guerra do Golfo: embora armado em medida
não desprezível, o Iraque de Saddam Hussein sofria uma derrota rápida e
irreparável. Era um sinal de alarme sobretudo para os países que há pouco se
haviam impetuosamente liberado do jogo colonial.
Em Pequim, em junho de 1991, Jiang Zemin (2010, pp. 134, 136 e 591)
exprimia a sua preocupação: “Se em todo o caso uma guerra mundial não é
iminente, o mundo está bem longe de ser pacífico”; “particularmente preocupante
é a Guerra do golfo”. “O papel da tecnologia militar tornou-se uma questão
importante”: no que diz respeito à China, em certos setores do aparato militar
“o gap se está agravando”. É um conceito reafirmado e melhor definido cinco
anos depois: “a aplicação em larga escala de novas e sofisticadas tecnologias
está mudando profundamente o mundo no plano não só social e econômico, mas
também militar, e está introduzindo mudanças revolucionárias nesta área”.
A ausência da primeira revolução industrial e tecnológica tinha
assinalado o início do “século das humilhações”; a ausência da revolução
industrial, tecnológica e militar em curso levaria a uma repetição desta tragédia
talvez em escala ainda maior. Neste quadro é que devem ser inseridos os
esforços desenvolvidos pela China nos últimos anos para reduzir o seu atraso no
plano militar.
Ameaça chinesa?
Argumento de fábula política no passado mais recente, a “ameaça chinesa”
ganhou subitamente uma dimensão real e concreta em nossos dias? Damos a palavra
a um estudioso estadunidense de origem chinesa, autor de um livro publicado por
uma instituição de certo modo oficial do país guia do Ocidente (Strategic Studies Institute, U. S. Army War College). Pois bem, nesse
estudo podemos ler que, segundo alguns analistas, os mísseis chineses poderiam
“obrigar a Marinha estadunidense a operar a uma maior distância da costa
[chinesa], ao menos na fase inicial do conflito” (Lai, 2011, p. 217). Sendo
assim, se pode entender as amarguras de Washington pelo fato de que o Pacífico
não é mais (na sua parte ocidental) “um lago Anglo-saxão”, aliás um “lago
privado” (DYER, 2014, p. 2), ou não é mais assim tão fácil violar o espaço
territorial, aéreo e marítimo do grande país asiático; e todavia seria
simplesmente temerário falar de “China Threat” ou do “perigo
amarelo”! Atualmente, a marinha militar estadunidense, que goza de uma
esmagadora superioridade, “opera a poucas milhas de distância de muitas das
mais importantes cidades chinesas” (Dyer, 2014, p. 1). Se isso é sinônimo de
“ameaça chinesa”, o que se deveria dizer de uma situação inversa, segundo a
qual uma superior marinha militar chinesa tivesse sob controle e ameaça, a
poucas milhas de distância, São Francisco e Nova Iorque? Na realidade, nas
páginas do Foreign Affairs, o autor do artigo
que já conhecemos sobre a capacidade alcançada pelos EUA de lançar um primeiro
golpe nuclear, sublinha satisfeito “o passo glacial da modernização das forças
nucleares chinesas”: portanto, “as probabilidades de que Pequim adquira no
próximo decênio um poder nuclear dissuasor capaz de sobreviver são mínimas […]
Contra a China os Estados Unidos têm hoje uma capacidade de lançar o primeiro
ataque e estarão em condições de manter esta capacidade ainda por um decênio ou
mais” (Lieber, Press, 2006, pp. 43 e 49-50).
Mas como explicar então os conflitos em torno de algumas ilhas
localizadas no Mar Chinês Oriental e no Mar Chinês Meridional? Retomamos a
leitura do estudo publicado pelo Strategic
Studies Institute: “A China tem uma longa história de pescadores que pescavam nestas
águas assim como de reivindicações oficiais destas ilhas. Presumivelmente, os
chineses primeiro deram a elas um nome, as utilizaram como pontos de referência
para a navegação, tentaram designá-las como território chinês colocando-as sob
jurisdição das províncias costeiras meridionais e definindo-as como tais sobre
um mapa. Por séculos os chineses deram como certo que este certificado histórico
(historical reach) estabelecia a sua propriedade sobre
estas ilhas e suas águas circundantes” (Lai, 2011, p. 127).
Intervieram depois o declínio da China e o expansionismo colonial: “nos
anos 30 os franceses tomaram posse das ilhas Paracelso (Xisha em chinês) e
Spratly (Nansha em chinês) de modo a expandir o alcance do seu protetorado
colonial”, enquanto “durante a segunda guerra mundial o Japão assume o controle
de todas as ilhas do Mar Chinês Meridional” (Lai, 2011, p. 128). Com a
Declaração do Cairo (1943) e a proclamação de Potsdam (1945) o Japão se
empenhava a restituir todos os territórios que “havia roubado”. Mas, depois da
eclosão da Guerra Fria, à Conferencia de Paz de Paz de São Francisco não foram
convidadas nem a República popular chinesa nem a República chinesa (Taiwan); o
Japão, aliado aos EUA, podia assim reter as ilhas Senkaku (Diaoyu para os
chineses).
Elas deveriam ter sido restituídas, mas nas novas circunstâncias eram de
grande utilidade, funcionando como uma pistola apontada contra o inimigo saído
de uma grande revolução anticolonial e inspirador na Ásia de uma ulterior onda
de revoluções anticoloniais. Dava prova de precaução o primeiro ministro Zhou
Enlai, que às vésperas da conferência condenava os EUA pelo fato “de privar a
China do seu direito a recuperar os territórios perdidos” e “de lançar um
tratado para a guerra, não para a paz, no Pacífico Ocidental” (Lai, 2011, p.
129).
Vale a pena notar que em relação às ilhas contestadas a República
popular chinesa não assume uma posição diversa daquela da República da China
(Taiwan). Aliás, esta última tem dado prova de maior firmeza, a julgar pela
fonte estadunidense mais vezes citada: “Em 1946, o governo da República da
China enviou navios de guerra para ‘recuperar’ as ilhas Paracelso e Spratly. Em
um mundo que enfatizava o controle de fato mais que as reivindicações
históricas, a China teria podido manter ali as suas tropas a fim de exercer o
controle de fato sobre aqueles territórios e afirmar resoluta e
incontestavelmente a posse daquelas ilhas. Por ter deixado de fazer isso e ter
negligenciado por decênios as ilhas do Mar Chinês Meridional os líderes
chineses (em primeiro lugar da República popular) devem eles próprios se
penitenciar (…) Os líderes chineses (em primeiro lugar da República popular)
gastaram todo o seu tempo e todas as suas energias jogando os chineses uns
contra os outros em ‘perpétuas revoluções e lutas de classe’, enquanto deixavam
abandonados os territórios contestados em mar aberto” (Lai, 2011, p. 130).
Pequim x Tóquio
Particularmente intratável é o conflito entre China e Japão, mas é este
último a tê-lo provocado. Essa verdade emerge das próprias análises dos
jornalistas e estudiosos ocidentais: é “razoável” a reivindicação avançada por
Pequim acerca da ilha Diaoyu (ou Senkaku); e se trata de uma reivindicação
levada adiante por toda a nação chinesa, que aliás reprova os seus governantes
por assumirem um comportamento “muito conciliador e mole” (Kristof, 2013). Não
obstante isso – sublinha um sociólogo britânico – a China se contentaria em
definir como “contestada” a propriedade daquelas ilhas, postergando a solução
do problema às futuras gerações. Se trata de uma proposta já avançada em
seu tempo por Zhou Enlai e inicialmemte aceita pelo Japão, que agora ao contrário
a rejeita secamente. É uma “loucura” que se explica com a onda chauvinista que
sacode o país (Dore, 2013). Trata-se de uma nação – vale acrescentar – que tem
dificuldade de fazer as contas com o seu passado. Em 1965, enquanto se
desencadeava a agressão contra o Vietnã, o primeiro ministro japonês Eisaku
Sato solicitava ao secretário estadunidense para a defesa, Robert McNamara, que
fizesse recurso à arma nuclear no caso de guerra contra a China, culpada por
ajudar o Vietnã (International Herald Tribunne 2008). Nos nossos dia,
encorajado pelo apoio dos EUA e pelo “pivô” antichinês por ele encenado, o
governo japonês se obstina em um negacionismo que, em razão do seu radicalismo,
termina por inquietar até mesmo Washington. De qualquer modo, em tudo
pretensiosa se revela a palavra de ordem da “China Threat” (ou do “perigo amarelo”): na realidade, ela é uma completa deformação
da verdade. O fato é que não podemos considerar definitivamente concluída a
luta de liberação nacional que presidiu o nascimento da República popular
chinesa. Não se trata só de Taiwan. Ecoam insistentes as vozes que preveem ou
desejam para o grande país asiático um fim análogo àquele que sofreu a União
Soviética ou a Iugoslávia: “uma nova fragmentação da Cinha é o desfecho mais
provável” – anunciava um livro de sucesso publicado em Nova Iorque no ano mesmo
da implosão do país derrotado no curso da Guerra Fria (Friedman, Lebard, 1991).
A hipótese da desintegração
A partir de então, nos EUA e nos países que com ele formam aliança, se
multiplicaram as tomadas de posição de analistas, estrategistas, políticos,
homens de Estado que previam ou invocavam a “fragmentação do colosso chinês”, o
seu desmembramento em “sete chinas” ou em “muitas Taiwans”. O ideal seria
proceder a uma “desintegração do interior” (desintegration from within). Em todo caso Washington é chamada a
“afrontar de maneira mais coerente a futura fragmentação da China”. Estamos em
presença de uma campanha que se move em várias frentes: dá o que pensar o
prêmio conferido pelo Los Angeles Times a um livro que invoca
o retorno à China da dinastia Ming (que teve o seu fim em 1644), com a exclusão
consequentemente do Tibet, de Xinjiang, da Mongólia interior e da Manchúria.
Mas, obviamente, o autor aqui citado tem em mira só a República popular
chinesa: assim, junto a séculos de história, deveria ser posta em discussão uma
parte bastante considerável (mais ou menos a metade) do seu atual território.
Ainda além vai um outro livro aclamado no Ocidente (Ross Terril, 2003, The New Chinese Empire And What It Means for the
United States): se deve contrastar o governo de Pequim também a propósito da
“invenção de uma única etnia de chineses Han”; na realidade no seu interior
subsistem notáveis diferenças no que diz respeito a esta mesma língua, e portanto…
Às vezes, o desejo de se livrar de um potencial concorrente prefere se
camuflar de previsão histórica: “Alguns experts têm mesmo profetizado o
repetir-se de um daqueles ciclos históricos em que se assistiu ao
desmembramento do país, que faria desvanecer os sonhos de grandeza da China”
(Brzezinski, 1998, p. 218).
Qualquer que seja a linguagem utilizada, estamos diante de um objetivo
perseguido independentemente da política posta em prática pelo governo de
Pequim no plano nacional e internacional: em 1999, o ano do bombardeio da
embaixada chinesa em Belgrado, um expoente de relevo da administração
estadunidense declarava que, só por sua “dimensão”, a China constituía um
problema ou uma potencial ameaça (Richardson, 1999). Não admira então que, ao
receber o Prêmio pela Paz dos livreiros alemães, o “dissidente” chinês Liao
Yiwu tenha pronunciado um discurso cuja palavra de ordem, em relação ao seu
país, era: “Este Império deve acabar em pedaços” (auseinanderbrechen)
(Köckritz, 2012). Como se vê, o desmembramento da China, uma vez alcançado,
seria considerado uma contribuição à causa da paz! Resta o fato que é o país
para o qual se projeta, ou se invoca ou se sonha o desmembramento, aquele que
está realmente sendo ameaçado.
* Excerto publicado
no site “Il Caffè Geopolitico”, 5 de fevereiro de 2016. O livro de Domenico
Losurdo onde estão publicadas originalmente estas páginas (La Sinistra Assente:
crisi, società dello spettacolo, guerra) está sendo vertido para o português,
sob os cuidados de outro tradutor, pela editora Anita Garibaldi em parceria com
a Fundação Maurício Grabois, com previsão de lançamento ainda para este ano.
** Domenico Losurdo é
prof. emérito de História da Filosofia na Universidade de Urbino (Italia).
Referências
Brzezinski, Z. K.
(1998). La grande sacchiera. Longanesi, Milano.
Dyer, G. (2014) US vs. china: is this the new cold war, in Financial Times, 22-23 febbraio, pp. 1-2.
Dore, R. (2013) Isole conteste, ecco perchè Tokyo sbaglia, in La Lettura, suplemento al “Corriere della Sera”, 8 dicembre., p. 5.
Friedman, G. Lebard, M. (1991) The Coming War with Japan. St. Martin Press, New York.
Kinssinger, H. (2011) On China. The Peguim Press, New York.
Kristof, N. D. (2011) Bahrain pulls a Qaddafi, in: International Herald Tribune, 18 marzo, p. 7.
Köcritz, A. (2012) Zwei gute Störer, in Die Zeit, 14 marzo, p. 53.
Lai, D. (2011) The Unite States and China in Power Transition. Strategic Studies Institute, Carlisle, p. 9.
Lieber, K. A., Press, D. G. (2006) The Rise of U. S. Nuclear primacy in “Foreign Affairs”, marzo-aprile, pp. 42-54.
Richardson, M. (1999) Asia Looks to Zhu for Sing of Backing Off On Spratlys, in: International Herald Tribune, 22 novembre, p. 5
Zemin, J. (2010) Selected Works, I, Foreign Languages Press, Beinjing
Dyer, G. (2014) US vs. china: is this the new cold war, in Financial Times, 22-23 febbraio, pp. 1-2.
Dore, R. (2013) Isole conteste, ecco perchè Tokyo sbaglia, in La Lettura, suplemento al “Corriere della Sera”, 8 dicembre., p. 5.
Friedman, G. Lebard, M. (1991) The Coming War with Japan. St. Martin Press, New York.
Kinssinger, H. (2011) On China. The Peguim Press, New York.
Kristof, N. D. (2011) Bahrain pulls a Qaddafi, in: International Herald Tribune, 18 marzo, p. 7.
Köcritz, A. (2012) Zwei gute Störer, in Die Zeit, 14 marzo, p. 53.
Lai, D. (2011) The Unite States and China in Power Transition. Strategic Studies Institute, Carlisle, p. 9.
Lieber, K. A., Press, D. G. (2006) The Rise of U. S. Nuclear primacy in “Foreign Affairs”, marzo-aprile, pp. 42-54.
Richardson, M. (1999) Asia Looks to Zhu for Sing of Backing Off On Spratlys, in: International Herald Tribune, 22 novembre, p. 5
Zemin, J. (2010) Selected Works, I, Foreign Languages Press, Beinjing
- See more at:
http://www.resistencia.cc/domenico-losurdo-os-eua-o-pivo-antichines-e-os-perigos-de-guerra/#sthash.kXz3a3DV.dpuf