11 fevereiro, 2000

Resenha Crítica marxista de Pedro Leão da Costa Neto sobre Domenico Losurdo Nietzsche e la critica della modernità

Fonte: http://www.ifch.unicamp.br/criticamarxista/arquivos_biblioteca/resenha64Resenha%202.pdf

Domenico Losurdo Nietzsche e la critica della modernità. Per una biografia politica. Roma, Manifestolibri, 1997.

Pedro Leão da Costa Neto (Professor de Filosofia da Universidade Tuiuti do Paraná)

O que distingue este pequeno livro de Domenico Losurdo, editado em 1997, da grande maioria da produção dedicada a Nietzsche – em particular no ano 2000, ano do centenário da morte do filósofo – é a decidida oposição a toda tentativa de minimizar a importância das posições conservadoras mais extremadas do pensador alemão, mas sem cair na tendência de identificá-lo como um antecessor do nacional-socialismo.

A análise que nos oferece Losurdo se encontra, portanto, em oposição tanto a uma leitura que pretende identificar Nietzsche como teó- rico ou profeta do individualismo pósmoderno, quanto a leituras como a de Lukács (Die Zerstörung der Vernunft – A destruição da razão – 1954) ou Nolte (Nietzsche und der Nietzscheanismus – 1990), que tendem a identificá-lo como um predecessor de Hitler. A este respeito, afirma Losurdo: “(...) comum a uma e a outra interpretação é a abstração do tempo histórico que, ao contrário, é o que procuramos precisar” (p. 72). Mas, embora Losurdo refira-se a essas duas leituras, o alvo principal de sua crítica será a interpretação que procura inocentar Nietzsche. O método de investigação da História da Filosofia utilizado por Losurdo se caracteriza pela inserção do autor estudado em seu contexto histórico, cultural e ideológico bem como pela tentativa de identificar os momentos de continuidade e ruptura que caracterizam os diferentes períodos da obra estudada e sua relação com a história. Desde o início do seu livro, nosso autor ressalta a estreita relação entre Nietzsche e seu tempo.

 Já nas páginas iniciais, Losurdo mostra a íntima relação entre a primeira obra de Nietzsche – O Nascimento da Tragédia, publicada em 1872 – com a Guerra Franco-Prussiana e a Comuna de Paris. Esta mesma relação entre teoria e história é igualmente ressaltada, quando o autor analisará as concepções mais polêmicas do filósofo alemão, como por exemplo a “defesa da escravidão” e a proposta de “destruição de seres malogrados e raças decadentes”.

 Segundo Losurdo, toda tentativa de relativizar, minimizar ou inocentar as posições político-filosóficas assumidas por Nietzsche estão em clara contradição com o “robusto sentido histórico do filósofo” e do “elevado observatório” em que ele se encontra, para a análise e julgamento dos fatos históricos, que são resultado das investigações de longa duração, presentes e características da obra de Nietzsche. De maneira paradoxal, o autor inverte a chave atual de leitura da obra de Nietzsche, mostrando que ele é “em certo sentido mais radical e mais radicalmente político do que o próprio Marx” (p. 70) e acrescenta que Nietzsche deve ser considerado “antes de tudo como totus politicus” (p. 71). Portanto, Losurdo se opõe a toda tentativa de imergir o autor do Nascimento da Tragédia em um “banho de inocência”: “Na realidade o filósofo tem um sentido histórico claramente mais robusto do que o dos modernos representantes da hermenêutica da inocência” (p. 69).

O capítulo conclusivo do livro, o capítulo 10 intitulado Metafora e storia, é dedicado exatamente a criticar a leitura metafórica de Nietzsche. Como exemplo dessa leitura metafórica de Nietzsche, nós podemos citar, para o caso dos autores brasileiros, dois recentes trabalhos de Osvaldo Giacóia Júnior. Em um artigo comemorativo no Caderno Mais! do jornal Folha de S. Paulo, Giacóia afirma que as leituras que pretendem ver em Nietzsche um “pensador reacionário feroz, chauvinista e aristocrático anacrônico” é resultado de uma análise superficial, que não consegue ir além das máscaras e fachadas da argumentação nietzschiana.” (Osvaldo Giacóia, “A genealogia dos preconceitos”, Caderno Mais!, Folha de S. Paulo, 6 de agosto de 2000, p. 13-14). O mesmo Giacóia em seu livro Nietzsche faz a observação seguinte: “A motivação fundamental de sua filosofia política pode ser buscada não em alguma identificação com os interesses de uma classe social ou movimento político, mas na compreensão da cultura como redenção da natureza e da vida. Essa mesma observação vale para as fases ulteriores de seu filosofar. São equivocadas, portanto, as interpretações que consideram a sua obra uma apologia da aristocracia e da escravidão” (Nietzsche, São Paulo, Publifolha, 2000, p. 39).

Essa leitura de Nietzsche proposta por Giacóia se aproxima das concepções que são objeto de crítica por parte de Losurdo. Uma vez identificada a concepção utilizada por Losurdo para analisar a obra de Nietzsche e os objetivos do seu trabalho, tentaremos isolar alguns aspectos importantes do livro. Atento às características e à particularidade da obra de Nietzsche, Losurdo identifica os três períodos constitutivos da obra do filósofo: 1o período: 1872 – Nascimento da tragédia, 1873/76 – Considerações inatuais (período ao qual são dedicados os capítulos I e II do livro de Losurdo); 2o período: 1878/79 – Humano, demasiado humano, 1881 – Aurora, 1882 – Gaia ciência (período ao qual são dedicados os capítulos III e IV do livro); 3 o período: 1883/85 – Assim falou Zarathustra, 1886 – Para além do bem e do mal, 1887 – Genealogia da moral, – Crepúsculo dos Idolos e Anticristo. Domenico Losurdo ressalta a especificidade de cada período, as influências recebidas e a temática privilegiada, tentando relacionar a evolução da obra do filósofo alemão com problemas históricos de cada momento. Por exemplo: a passagem do primeiro ao segundo período vem reportada “(...) à mudança no quadro histórico que conduziu à crise da plataforma político-ideológica do Nascimento da tragédia” (p. 20).

Uma vez afastado o perigo da Comuna de Paris e consolidada a III República francesa, o perigo passou a ser a Social Democracia alemã, que parece ser, desde então, o motivo de maior preocupação do autor da Genealogia da moral. O fundamental do texto de Losurdo é, entretanto, a identificação que ele fará de algumas questões da obra de Nietzsche (o problema da longa duração e da inatualidade de Nietzsche), a partir das quais ele fundamentará parte de suas conclusões. O privilégio das análises de longa duração, que será um dos pilares da “radicalidade do projeto contra-revolucionário nietzschiano” (p. 27), está marcado, como já dissemos, por um robusto sentido histórico.

É a partir destas análises de longa duração que Nietzsche põe em discussão mais de dois mil anos de história: “a parábola destrutiva da modernidade” vem identificada já com Sócrates entre os gregos (p. 23, 26, 43) e se acentuará com o cristianismo com “(...) o conceito de igualdade das almas frente a Deus, o verdadeiro protótipo de todas as teorias da paridade de direitos, que depois se expressarão politicamente na Revolução Francesa e no movimento socialista” (p. 44). Losurdo afirma que em Nietzsche “(...) a cada etapa da parábola revolucionária, o filósofo contrapõe a maior riqueza cultural e o maior equilíbrio do regime a cada vez derrocado” (p. 58), e desta maneira faz a história regredir até encontrar-se com o Velho Testamento. Porém, estas longas análises não deixam de estar marcadas, segundo Losurdo, por uma análise “pouco propensa a distinções ou justificações” (p. 59) e por uma tendência a generalização e absolutização de alguns traços particulares. São estas análises de longa duração que fundamentarão a crítica inapelável de Nietzsche à modernidade e à civilização. A questão da inatualidade de Nietzsche, se bem que presente em diversos momentos do livro, a ela está especialmente dedicado o capítulo 8: Radicalità, “inattualitá” e incrinature del progetto reazionario (pp. 48-60).

O radicalismo de Nietzsche, segundo o autor, irá levá-lo a uma inatualidade se comparado com o seu tempo (o autor compara por exemplo a posição do filósofo com a dos nacionais-liberais alemães). Porém, como Losurdo bem sublinha, a inatualidade de Nietzsche não é sinônimo de estranheza ao seu próprio tempo. Losurdo enumera neste capítulo alguns paradoxos resultantes da radicalidade de Nietzsche. Citemos alguns: i) as análises do autor de Assim falou Zarathustra sobre a continuidade entre Lutero e a revolta dos camponeses, a Revolução Puritana na Inglaterra, a revolução americana e a revolução francesa é uma tese que o aproxima das concepções defendidas por Hegel e Engels, somente com juízos de valor invertido (p. 49); ii) a influência da revolução francesa no idealismo alemão é uma outra tese igualmente defendida por Hegel, Marx e Engels e que em Nietzsche aparece igualmente com um sentido diverso e contraposto; iii) a oposição ao anti-semitismo; iv) a crítica a toda modernidade o conduz a uma crítica da “sociedade do espetáculo” e da psicologia de massas (p. 54), como também a uma “(...) análise crítica extraordinariamente rica da penetração da divisão do trabalho no âmbito cultural” (idem); v) crítica ao provincianismo e ao eurocentrismo (p. 57).

 É no quadro deste radicalismo que devemos – segundo Losurdo – ler as propostas mais polêmicas de Nietzsche. A apologia da escravidão já se encontra presente mesmo em suas obras do primeiro período. Nietzsche ressaltava que a “escravidão entra na essência mesma da realidade” (p. 10) e que a autêntica cultura pressupõe o otium e este a servidão (p. 27). Porém, como ressalta Losurdo: “é necessário precisar o quadro histórico em que se coloca a vida e a reflexão de Nietzsche” (p. 29) e cita como exemplos: i) a juventude de Nietzsche durante a Guerra da Secessão; ii) a interdição da servidão de gleba na Rússia, o que não impediu, contudo, a sobrevivência efetiva de formas diversas de servidão; iii) a luta da Inglaterra para a abolição da escravidão (bloqueio naval dos anos 70-80), e enfim; iv) a abolição da escravidão no Brasil. Não faltam na obra de Nietzsche ecos desta história que lhe é contemporânea (p. 29-30), bem como a referência aos chineses que poderiam substituir a escravidão negra (p. 18 e 32). A outra proposta polêmica de Nietzsche é a do extermínio dos malogrados. Segundo Nietzsche, “(...) o crescimento sadio da espécie exige a amputação ou o sacrifício de fracassados, débeis e degenerados” (p. 64-5), o filósofo se refere também ao problema da destruição das “raças decadentes” (p. 67) e sustenta que a recusa deste sacrifício representaria uma “extrema imoralidade”. Nietzsche não recua nem mesmo em afirmar a necessidade de destruir milhões de malogrados e da castração de delinqüentes, doentes crônicos, sifilíticos etc. (p. 66-7). Estas “sinistras declarações” devem ser integradas e aproximadas do seu contexto histórico: é o período em que Francis Galton (citado favoravelmente por Nietzsche) lança a Eugenia e que nos EUA são lançadas medidas práticas para a realização desta “nova ciência” (p. 66). No referente à destruição das raças decadentes, alguns anos antes, Ludwig Gumplowicz já afirmava que era justo exterminar, como caça nas florestas, os homens da selva e os hotentotes, e se comportam assim os próprios bôeres cristãos. Nietzsche chega mesmo a afirmar a necessidade de abandonar, na prática do domínio e da expansão colonial, a “benevolência européia” em relação às “raças decadentes” (p. 67-68). A crítica de Losurdo não se reduz somente ao aspecto político. É importante fazer referência ao capítulo 6, Politica ed epistemologia, no qual as concepções políticas de Nietzsche são aproximadas das suas concepções epistemológicas. Partindo da afirmação de Nietzsche que não se pode declinar a moral ao singular (p. 39), Losurdo mostra que, desde seus artigos juvenis, o acerto de contas com o movimento revolucionário aparece também no plano epistemológico.

A liquidação do igualitarismo pressupõe a liquidação do realismo dos universais (p. 41). É a partir desta concepção epistemológica que Nietzsche se oporá a uma “visão realista da razão” (p. 41), à tendência ao nivelamento expressa pela norma moral no plano da ética e à idéia de igualdade no plano político (p. 42). Novamente aqui a crítica parte de Sócrates passando por Jesus, Lutero e Rousseau para chegar à modernidade com a democracia e o socialismo. Não é supérfluo lembrarmos, antes de concluir, que a reconstrução crítica do pensamento de Nietzsche vem sempre efetuada com base em citações de suas obras, retiradas da edição histórico-crítica publicada por G. Colli e M. Montinari. Além de nos oferecer, como já dissemos, uma aplicação de seu mé- todo de investigação utilizado para a reconstrução da História política e da Filosofia nos séculos XIX e XX, o livro de Losurdo nos oferece uma crítica da obra de Nietzsche que visa superar as leituras a-históricas do filósofo alemão. Como as palavras de Losurdo se incumbem de nos esclarecer: “(...) a trágica grandeza do filósofo, o fascínio e a extraordinária riqueza de um autor capaz de pensar a história inteira do Ocidente e de colocar-se bem além da atualidade, sobre o terreno da “longa duração”, tudo isto emerge plenamente só se, renunciando a remover ou a transfigurar em um inocente jogo de metáforas as suas páginas mais inquietantes ou mais repugnantes, ousarmos olhar de frente para aquilo que realmente é: o maior pensador entre os reacionários e o maior reacionário entre os pensadores” (p. 73).
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Patterson, professor de Antropologia e autor de diversos livros sobre a sociedade humana, a partir de uma perspectiva marxista, publica um belo livro que visa questionar o conceito de “civilização” como uma abstração que transcende a sociedade. Logo em seu primeiro capítulo, “Inventando a civilização” (p. 9-25), Patterson começa por citar a cruzada do líder conservador americano, Newt Gingrich, em prol da civilização americana, que estaria ameaçada pela diversidade cultural. Segundo Gingrich, essa diversidade destrutiva resultou da imigração e do movimento pelos direitos civis, cristalizados na perigosa política multiculturalista. Haveria sete ou oito civilizações no mundo (Ocidental, Confucionista, Japonesa, Islâmica, Hindu, Eslava-Ortodoxa, Latino-Americana e Africana), sendo apenas uma universal, a Ocidental. Entre suas características únicas e que a fazem especial estão o individualismo, o liberalismo, o constitucionalismo, os direitos humanos, a eqüidade, a liberdade, o direito, a democracia, o livre mercado e a separação de Estado e Igreja, conjunção que não existe em nenhuma das outras civilizações. Essa civilização é ameaçada por dois perigos inerentes ao multiculturalismo: a luta de classes e a guerra civil.
Thomas C. Patterson Inventing Western Tradition. Nova Iorque, Monthly Review Press, 1997. Pedro Paulo A. Funari (Professor do Departamento de História, Unicamp).

NETO, Pedro Leão da Costa.

Resenha de: LOSURDO, Domenico. Nietzsche e la critica della modernità. Per una biografia política. Roma: Manifestolibri, 1997. Crítica Marxista, São Paulo, Boitempo, v.1, n. 11, 2000, p. 168-172.

 Palavras-chave: Nietzsche; Século XIX; Modernidade.