Fonte: http://www.ifch.unicamp.br/criticamarxista/arquivos_biblioteca/resenha64Resenha%202.pdf
Domenico Losurdo
Nietzsche e la critica della modernità. Per una biografia politica. Roma, Manifestolibri, 1997.
Pedro Leão da Costa Neto (Professor de Filosofia da Universidade Tuiuti do Paraná)
O que distingue este pequeno livro
de Domenico Losurdo, editado em 1997,
da grande maioria da produção dedicada
a Nietzsche – em particular no ano 2000,
ano do centenário da morte do filósofo –
é a decidida oposição a toda tentativa de
minimizar a importância das posições
conservadoras mais extremadas do pensador
alemão, mas sem cair na tendência
de identificá-lo como um antecessor
do nacional-socialismo.
A análise que
nos oferece Losurdo se encontra, portanto,
em oposição tanto a uma leitura que
pretende identificar Nietzsche como teó-
rico ou profeta do individualismo pósmoderno,
quanto a leituras como a de
Lukács (Die Zerstörung der Vernunft –
A destruição da razão – 1954) ou Nolte
(Nietzsche und der Nietzscheanismus –
1990), que tendem a identificá-lo como
um predecessor de Hitler. A este respeito,
afirma Losurdo: “(...) comum a uma e a
outra interpretação é a abstração do tempo
histórico que, ao contrário, é o que
procuramos precisar” (p. 72). Mas, embora
Losurdo refira-se a essas duas leituras,
o alvo principal de sua crítica será
a interpretação que procura inocentar
Nietzsche. O método de investigação da História da Filosofia utilizado por Losurdo se
caracteriza pela inserção do autor estudado
em seu contexto histórico, cultural
e ideológico bem como pela tentativa de
identificar os momentos de continuidade
e ruptura que caracterizam os diferentes
períodos da obra estudada e sua
relação com a história. Desde o início
do seu livro, nosso autor ressalta a estreita
relação entre Nietzsche e seu tempo.
Já nas páginas iniciais, Losurdo mostra
a íntima relação entre a primeira obra
de Nietzsche – O Nascimento da Tragédia, publicada em 1872 – com a Guerra
Franco-Prussiana e a Comuna de Paris.
Esta mesma relação entre teoria e história é igualmente ressaltada, quando o
autor analisará as concepções mais polêmicas
do filósofo alemão, como por
exemplo a “defesa da escravidão” e a proposta
de “destruição de seres malogrados
e raças decadentes”.
Segundo Losurdo,
toda tentativa de relativizar, minimizar ou
inocentar as posições político-filosóficas
assumidas por Nietzsche estão em clara
contradição com o “robusto sentido histórico
do filósofo” e do “elevado observatório”
em que ele se encontra, para a
análise e julgamento dos fatos históricos,
que são resultado das investigações
de longa duração, presentes e características
da obra de Nietzsche. De maneira
paradoxal, o autor inverte a chave atual
de leitura da obra de Nietzsche, mostrando
que ele é “em certo sentido mais radical
e mais radicalmente político do que
o próprio Marx” (p. 70) e acrescenta que
Nietzsche deve ser considerado “antes de
tudo como totus politicus” (p. 71). Portanto,
Losurdo se opõe a toda tentativa
de imergir o autor do Nascimento da Tragédia
em um “banho de inocência”: “Na
realidade o filósofo tem um sentido histórico
claramente mais robusto do que o
dos modernos representantes da hermenêutica
da inocência” (p. 69).
O capítulo
conclusivo do livro, o capítulo 10
intitulado Metafora e storia, é dedicado
exatamente a criticar a leitura metafórica
de Nietzsche.
Como exemplo dessa leitura metafórica de Nietzsche, nós podemos citar,
para o caso dos autores brasileiros, dois
recentes trabalhos de Osvaldo Giacóia
Júnior. Em um artigo comemorativo no
Caderno Mais! do jornal Folha de S.
Paulo, Giacóia afirma que as leituras que
pretendem ver em Nietzsche um “pensador
reacionário feroz, chauvinista e
aristocrático anacrônico” é resultado de
uma análise superficial, que não consegue
ir além das máscaras e fachadas da
argumentação nietzschiana.” (Osvaldo
Giacóia, “A genealogia dos preconceitos”,
Caderno Mais!, Folha de S. Paulo,
6 de agosto de 2000, p. 13-14). O mesmo
Giacóia em seu livro Nietzsche faz a
observação seguinte: “A motivação fundamental
de sua filosofia política pode
ser buscada não em alguma identificação com os interesses de uma classe social
ou movimento político, mas na compreensão
da cultura como redenção da
natureza e da vida. Essa mesma observação
vale para as fases ulteriores de seu
filosofar. São equivocadas, portanto, as
interpretações que consideram a sua obra
uma apologia da aristocracia e da escravidão”
(Nietzsche, São Paulo, Publifolha,
2000, p. 39).
Essa leitura de Nietzsche
proposta por Giacóia se aproxima das
concepções que são objeto de crítica por
parte de Losurdo.
Uma vez identificada a concepção
utilizada por Losurdo para analisar a obra
de Nietzsche e os objetivos do seu trabalho,
tentaremos isolar alguns aspectos
importantes do livro.
Atento às características e à particularidade
da obra de Nietzsche, Losurdo
identifica os três períodos constitutivos
da obra do filósofo: 1o
período: 1872 –
Nascimento da tragédia, 1873/76 – Considerações
inatuais (período ao qual são
dedicados os capítulos I e II do livro de
Losurdo); 2o
período: 1878/79 – Humano,
demasiado humano, 1881 – Aurora,
1882 – Gaia ciência (período ao qual são
dedicados os capítulos III e IV do livro);
3
o
período: 1883/85 – Assim falou
Zarathustra, 1886 – Para além do bem e
do mal, 1887 – Genealogia da moral, – Crepúsculo dos Idolos e Anticristo.
Domenico Losurdo ressalta a especificidade
de cada período, as influências
recebidas e a temática privilegiada, tentando
relacionar a evolução da obra do
filósofo alemão com problemas históricos
de cada momento. Por exemplo: a
passagem do primeiro ao segundo período
vem reportada “(...) à mudança no
quadro histórico que conduziu à crise da
plataforma político-ideológica do Nascimento
da tragédia” (p. 20).
Uma vez
afastado o perigo da Comuna de Paris e
consolidada a III República francesa, o
perigo passou a ser a Social Democracia
alemã, que parece ser, desde então, o
motivo de maior preocupação do autor
da Genealogia da moral.
O fundamental do texto de Losurdo é,
entretanto, a identificação que ele fará de
algumas questões da obra de Nietzsche (o
problema da longa duração e da inatualidade
de Nietzsche), a partir das quais ele
fundamentará parte de suas conclusões.
O privilégio das análises de longa
duração, que será um dos pilares da
“radicalidade do projeto contra-revolucionário
nietzschiano” (p. 27), está marcado,
como já dissemos, por um robusto
sentido histórico.
É a partir destas análises
de longa duração que Nietzsche põe
em discussão mais de dois mil anos de
história: “a parábola destrutiva da
modernidade” vem identificada já com
Sócrates entre os gregos (p. 23, 26, 43) e
se acentuará com o cristianismo com
“(...) o conceito de igualdade das almas
frente a Deus, o verdadeiro protótipo de
todas as teorias da paridade de direitos,
que depois se expressarão politicamente
na Revolução Francesa e no movimento
socialista” (p. 44). Losurdo afirma que em
Nietzsche “(...) a cada etapa da parábola
revolucionária, o filósofo contrapõe a
maior riqueza cultural e o maior equilíbrio do regime a cada vez derrocado”
(p. 58), e desta maneira faz a história
regredir até encontrar-se com o Velho Testamento.
Porém, estas longas análises não
deixam de estar marcadas, segundo
Losurdo, por uma análise “pouco propensa
a distinções ou justificações” (p. 59) e
por uma tendência a generalização e
absolutização de alguns traços particulares.
São estas análises de longa duração
que fundamentarão a crítica inapelável de
Nietzsche à modernidade e à civilização.
A questão da inatualidade de
Nietzsche, se bem que presente em diversos
momentos do livro, a ela está especialmente
dedicado o capítulo 8:
Radicalità, “inattualitá” e incrinature del
progetto reazionario (pp. 48-60).
O radicalismo
de Nietzsche, segundo o autor, irá
levá-lo a uma inatualidade se comparado
com o seu tempo (o autor compara por
exemplo a posição do filósofo com a dos
nacionais-liberais alemães). Porém,
como Losurdo bem sublinha, a inatualidade
de Nietzsche não é sinônimo de
estranheza ao seu próprio tempo.
Losurdo enumera neste capítulo alguns
paradoxos resultantes da radicalidade de
Nietzsche. Citemos alguns: i) as análises
do autor de Assim falou Zarathustra
sobre a continuidade entre Lutero e a
revolta dos camponeses, a Revolução
Puritana na Inglaterra, a revolução americana
e a revolução francesa é uma tese
que o aproxima das concepções defendidas
por Hegel e Engels, somente com
juízos de valor invertido (p. 49); ii) a influência
da revolução francesa no idealismo
alemão é uma outra tese igualmente
defendida por Hegel, Marx e Engels e
que em Nietzsche aparece igualmente com um sentido diverso e contraposto;
iii) a oposição ao anti-semitismo; iv) a
crítica a toda modernidade o conduz a
uma crítica da “sociedade do espetáculo”
e da psicologia de massas (p. 54),
como também a uma “(...) análise crítica
extraordinariamente rica da penetração da divisão do trabalho no âmbito
cultural” (idem); v) crítica ao provincianismo
e ao eurocentrismo (p. 57).
É no quadro deste radicalismo que
devemos – segundo Losurdo – ler as propostas
mais polêmicas de Nietzsche.
A apologia da escravidão já se encontra
presente mesmo em suas obras do
primeiro período. Nietzsche ressaltava
que a “escravidão entra na essência mesma
da realidade” (p. 10) e que a autêntica
cultura pressupõe o otium e este a servidão
(p. 27). Porém, como ressalta
Losurdo: “é necessário precisar o quadro
histórico em que se coloca a vida e a
reflexão de Nietzsche” (p. 29) e cita
como exemplos: i) a juventude de
Nietzsche durante a Guerra da Secessão;
ii) a interdição da servidão de gleba na
Rússia, o que não impediu, contudo, a
sobrevivência efetiva de formas diversas
de servidão; iii) a luta da Inglaterra para
a abolição da escravidão (bloqueio naval
dos anos 70-80), e enfim; iv) a abolição da escravidão no Brasil. Não faltam
na obra de Nietzsche ecos desta história
que lhe é contemporânea (p. 29-30), bem
como a referência aos chineses que poderiam
substituir a escravidão negra
(p. 18 e 32).
A outra proposta polêmica de
Nietzsche é a do extermínio dos malogrados.
Segundo Nietzsche, “(...) o crescimento
sadio da espécie exige a amputação
ou o sacrifício de fracassados, débeis e degenerados” (p. 64-5), o filósofo
se refere também ao problema da destruição
das “raças decadentes” (p. 67) e
sustenta que a recusa deste sacrifício representaria
uma “extrema imoralidade”.
Nietzsche não recua nem mesmo em afirmar
a necessidade de destruir milhões
de malogrados e da castração de delinqüentes,
doentes crônicos, sifilíticos etc.
(p. 66-7). Estas “sinistras declarações”
devem ser integradas e aproximadas do
seu contexto histórico: é o período em
que Francis Galton (citado favoravelmente
por Nietzsche) lança a Eugenia e que
nos EUA são lançadas medidas práticas
para a realização desta “nova ciência”
(p. 66). No referente à destruição das
raças decadentes, alguns anos antes,
Ludwig Gumplowicz já afirmava que era
justo exterminar, como caça nas florestas,
os homens da selva e os hotentotes,
e se comportam assim os próprios bôeres
cristãos. Nietzsche chega mesmo a afirmar
a necessidade de abandonar, na prática do domínio e da expansão colonial,
a “benevolência européia” em relação às
“raças decadentes” (p. 67-68).
A crítica de Losurdo não se reduz
somente ao aspecto político. É importante
fazer referência ao capítulo 6, Politica
ed epistemologia, no qual as concepções
políticas de Nietzsche são aproximadas
das suas concepções epistemológicas.
Partindo da afirmação de Nietzsche que
não se pode declinar a moral ao singular
(p. 39), Losurdo mostra que, desde seus
artigos juvenis, o acerto de contas com o
movimento revolucionário aparece também
no plano epistemológico.
A liquidação
do igualitarismo pressupõe a liquidação
do realismo dos universais
(p. 41). É a partir desta concepção epistemológica
que Nietzsche se oporá a uma
“visão realista da razão” (p. 41), à tendência ao nivelamento expressa pela norma
moral no plano da ética e à idéia de
igualdade no plano político (p. 42). Novamente
aqui a crítica parte de Sócrates
passando por Jesus, Lutero e Rousseau
para chegar à modernidade com a democracia
e o socialismo.
Não é supérfluo lembrarmos, antes
de concluir, que a reconstrução crítica
do pensamento de Nietzsche vem sempre
efetuada com base em citações de
suas obras, retiradas da edição histórico-crítica
publicada por G. Colli e M.
Montinari. Além de nos oferecer, como
já dissemos, uma aplicação de seu mé-
todo de investigação utilizado para a reconstrução
da História política e da Filosofia
nos séculos XIX e XX, o livro de
Losurdo nos oferece uma crítica da obra
de Nietzsche que visa superar as leituras
a-históricas do filósofo alemão. Como as
palavras de Losurdo se incumbem de nos
esclarecer: “(...) a trágica grandeza do
filósofo, o fascínio e a extraordinária riqueza
de um autor capaz de pensar a história
inteira do Ocidente e de colocar-se
bem além da atualidade, sobre o terreno
da “longa duração”, tudo isto emerge plenamente
só se, renunciando a remover
ou a transfigurar em um inocente jogo
de metáforas as suas páginas mais inquietantes
ou mais repugnantes, ousarmos
olhar de frente para aquilo que realmente
é: o maior pensador entre os reacionários e o maior reacionário entre os pensadores”
(p. 73).
.............................................................
Patterson, professor de Antropologia
e autor de diversos livros sobre a sociedade
humana, a partir de uma perspectiva
marxista, publica um belo livro que
visa questionar o conceito de “civilização” como uma abstração que transcende
a sociedade. Logo em seu primeiro
capítulo, “Inventando a civilização”
(p. 9-25), Patterson começa por citar a
cruzada do líder conservador americano,
Newt Gingrich, em prol da civilização
americana, que estaria ameaçada pela
diversidade cultural. Segundo Gingrich,
essa diversidade destrutiva resultou da
imigração e do movimento pelos direitos
civis, cristalizados na perigosa política multiculturalista. Haveria sete ou
oito civilizações no mundo (Ocidental,
Confucionista, Japonesa, Islâmica, Hindu,
Eslava-Ortodoxa, Latino-Americana
e Africana), sendo apenas uma universal,
a Ocidental. Entre suas características
únicas e que a fazem especial estão
o individualismo, o liberalismo, o
constitucionalismo, os direitos humanos,
a eqüidade, a liberdade, o direito, a democracia,
o livre mercado e a separação
de Estado e Igreja, conjunção que não
existe em nenhuma das outras civilizações. Essa civilização é ameaçada por
dois perigos inerentes ao multiculturalismo:
a luta de classes e a guerra civil.
Thomas C. Patterson Inventing Western Tradition. Nova Iorque, Monthly Review Press, 1997. Pedro Paulo A. Funari (Professor do Departamento de História, Unicamp).
NETO, Pedro Leão da Costa.
Resenha de: LOSURDO, Domenico. Nietzsche e la critica della
modernità. Per una biografia política. Roma: Manifestolibri, 1997. Crítica Marxista, São
Paulo, Boitempo, v.1, n. 11, 2000, p. 168-172.
Palavras-chave: Nietzsche; Século XIX; Modernidade.