O filósofo marxista italiano Domenico Losurdo, diante de um público formado por mais de uma centena de espectadores, em Fortaleza, levantou a necessidade de um novo bloco histórico para impulsionar o internacionalismo. E afirmou que esta meta será possível apenas “se os partidos comunistas recuperarem o orgulho da sua própria história e reforçarem sua capacidade de análise concreta da situação concreta”.
Por Luiz Carlos Antero*
Domenico Losurdo pronunciou sua conferência no Mercado dos Pinhões, transformado em espaço cultural pela Prefeitura, e no âmbito de um projeto da Comissão de Participação Popular e da Secretaria de Cultura municipal que tem como objetivo destacar Fortaleza como um polo nacional de reflexão sobre a conjuntura atual, debatendo temas relacionados à política, economia, cultura, urbanismo, meio ambiente, entre outros.
Losurdo externou, sob o tema “As lutas contra-hegemônicas do século XX ao Século XXI”, um lúcido e vigoroso exame da conjuntura sob a qual vive o mundo contemporâneo.
Numa circunstanciada reflexão, Losurdo propôs a superação de antigas analogias, citando pressupostos exemplares que não se confirmaram nos vaticínios de ícones da esquerda revolucionária, quanto à questão mundial das lutas libertárias nas circunstâncias das duas grandes guerras e da revolução chinesa.
Losurdo acentuou a proliferação da revolução anticolonialista em dimensão planetária no período que se seguiu à segunda grande guerra mundial, após a derrota do nazifascismo, abarcando não apenas as colônias mas as lutas — com o apoio dos países então socialistas — contra a supremacia econômica racista em países como os Estados Unidos e a África do Sul.
Vigência atual das lutas
Losurdo considera que a gigantesca revolução anticolonial estimulada pela Revolução de Outubro na Rússia e pela derrota nazista em Stalingrado produziu seus efeitos históricos. E que seus fundamentos guardam vigência — quando o colonialismo não deixou de existir em sua forma clássica, a exemplo da questão palestina, onde o povo resiste heroicamente não obstante “o uso barbárico da máquina de guerra israelita” apoiada pelos EUA e pela União Européia.
Aspectos múltiplos — e com persistência contemporânea — se expressam nos desdobramentos da luta entre colonialismo e anticolonialismo no mundo e no continente americano desde o início do século XX, explicitados numa declaração de Theodore Roosevelt: à “sociedade civilizada” no seu todo pertencia um “poder de polícia internacional” a ser exercido pelos EUA na América Latina.
Esta retomada e radicalização da Doutrina Monroe, entretanto, que se reproduziu em inúmeras intervenções militares contra os países “considerados estranhos ao mundo civil e comparados a bárbaros necessitados de tutela imperial”, caiu radicalmente em crise com o fracasso de meio século de medidas de toda sorte que visavam isolar, difamar, sufocar e liquidar a revolução cubana — que hoje tem sua força e seu significado internacional confirmados pelas mudanças na Venezuela, na Bolívia, no Equador, no Brasil, na Nicarágua, no Paraguai.
Neste sentido, Losurdo assinala que, com modalidades sempre muito diferentes, está em curso na América Latina a revolução anti-colonialista e anti-imperialista.
Relevância da edificação econômica
Neste rumo, Losurdo trabalha o tema da dominação colonial e do êxito das lutas anticolonialistas articulado ao desdobramento econômico das revoluções, considerando que o processo político da libertação somente se completa vitoriosamente com a emancipação econômica dos países sublevados.
Tal fenômeno foi destacado pela conclusão de que qualquer vitória militar teria que ser sustentada sequencialmente na luta pela produção agrícola e industrial, articulando a conquista do poder político à edificação econômica. Tudo isso para que “a apoteose da independência não se transforme na maldição da independência” — nos moldes da observação de Frantz Fanon, teórico da revolução argelina.
Na prolongada conquista de seu posto milenar no desenvolvimento da civilização humana, a China possuía em 1820, à época da “Guerra do Ópio”, 32,4% do PIB mundial. A corrosiva intervenção colonialista em seu território colocara o país entre os mais pobres do planeta em 1949, no momento da fundação da República Popular da China. No mesmo ano de 1820, a Índia reunião 15,7% do PIB mundial antes de ser reduzida à condição de país miserável pelo saque produzido pelas potências colonialistas e imperialistas.
Losurdo se refere também a uma revolução dos escravos negros contra o domínio colonial num país que, no final do século XVIII, se chamava Santo Domingo e que hoje é conhecido como Haiti, mantido sob a penúria da agricultura de subsistência e ainda hoje um dos países mais pobres do planeta. A derrota dessa vitória militar se deu na supressão da edificação econômica presente na linha do líder jacobino negro Toussaint Louverture.
Grotesca arma da inaniçãoCompreende-se, portanto, no pensamento de Losurdo, o confronto no plano econômico como relevante aspecto da luta entre colonialismo e anticolonialismo, entre imperialismo e anti-imperialismo. Em numerosos momentos dessa luta — contra a Rússia Soviética, contra Cuba ou contra países simpatizantes à tendência emancipacionista —, o sufocamento foi instrumento privilegiado sob as ameaças de “fome absoluta” e “morte por inanição”.
Exemplos contemporâneos de resistência, lembra Losurdo, são atualizados em países como a Bolívia, onde a consigna “industrialização ou morte!” — que significa, na concepção de Álvaro Garcia Linera, concretizar “o desmoronamento progressivo da dependência econômica colonial”.
Este ambiente, na visão de Losurdo, valoriza a progressiva “troca comercial e tecnológica com um país como a China”, reduzindo a ameaça de asfixia econômica alardeada pelo imperialismo, imprimindo agilidade à luta contra a Doutrina Monroe no plano econômico. Nesse sentido, aponta “uma substancial convergência entre os países e povos protagonistas da revolução anticolonialista e anti-imperialista”.
Novo internacionalismo
A nova solidariedade internacionalista passa, desse modo, pela percepção de que a feição moderna das lutas de libertação, fortemente vincadas pelas necessidades emancipacionistas dos povos, requer um novo bloco histórico significativo da unidade das esquerdas — inclusive daquela que qualifica como “esquerda ocidental” (européia), tão decidida quando se tratava de apoiar os movimentos insurrecionais noutro momento — aos países e povos submetidos a tais ameaças.
Losurdo propõe, enquanto questão relevante, a necessidade da completa abolição da influência do “imperialismo dos direitos humanos” e da islamofobia, que nos dias atuais, toma o lugar do tradicional flagelo racista que se abateu historicamente sobre os negros e “peles vermelhas” em suas diversas feições. Ressalta que somente dessa forma “o movimento de oposição presente nos países capitalistas avançados poderá dar uma contribuição real à luta contra a reação”.
Trata de ressaltar a moderna e insólita contradição que expõem os EUA, no exame dos conceitos de liberdade e direitos humanos expostos em 1941 por Franklin Roosevelt, e na tradição liberal derrotada pelos fatos. “Hoje, os EUA estão em primeiro lugar a fazer pesar em cada canto do mundo o medo e a angústia dos bombardeamentos, das destruições em larga escala e até da aniquilação nuclear”. Se a proposição da “libertação do medo” exaltava a proposta da redução do armamento numa polêmica indireta com o III Reich, “hoje os EUA gastam sozinhos em armamento tanto quanto o mundo inteiro”.
Boas perspectivas
Entre as “perspectivas positivas e encorajadoras”, Losurdo destaca o reaparecimento de povos e civilizações antes aniquilados pelo colonialismo; a quebra do monopólio tecnológico do imperialismo pelo prodigioso desenvolvimento da China; a retomada do horizonte socialista para além do “terceiro mundo”, também nos países capitalistas avançados, desde a tomada de consciência da profunda crise do capitalismo e do descrédito crescente do seu país modelo, os EUA.
Não obstante a multiplicidade das contradições — as quais busca examinar — que permeiam tais “perspectivas prometedoras e ameaças terríveis”, simultâneas, Losurdo ousa ao propor que se torna “urgente a construção no plano mundial de um novo bloco histórico”, considerando que “não é uma tarefa fácil porque se trata de soldar entre si forças colocadas em contextos histórico-culturais e situações políticas e geopolíticas muito diferentes”.
Mas, como as tarefas revolucionárias nunca consistiram de facilidades, remete-as para o âmbito da retomada das tradições historicamente compatíveis com as profundas transformações: “E este novo bloco histórico, o único que pode dar um novo balanço ao internacionalismo, só poderá ser constituído se os partidos comunistas, também os dos países capitalistas avançados, por um lado recuperarem o orgulho da sua própria história, por outro reforçarem a sua capacidade de análise concreta da situação concreta”.
Luiz Carlos Antero é sociólogo, jornalista, escritor, membro da Equipe de Pautas Especiais do Portal Vermelho
Domenico Losurdo pronunciou sua conferência no Mercado dos Pinhões, transformado em espaço cultural pela Prefeitura, e no âmbito de um projeto da Comissão de Participação Popular e da Secretaria de Cultura municipal que tem como objetivo destacar Fortaleza como um polo nacional de reflexão sobre a conjuntura atual, debatendo temas relacionados à política, economia, cultura, urbanismo, meio ambiente, entre outros.
Losurdo externou, sob o tema “As lutas contra-hegemônicas do século XX ao Século XXI”, um lúcido e vigoroso exame da conjuntura sob a qual vive o mundo contemporâneo.
Numa circunstanciada reflexão, Losurdo propôs a superação de antigas analogias, citando pressupostos exemplares que não se confirmaram nos vaticínios de ícones da esquerda revolucionária, quanto à questão mundial das lutas libertárias nas circunstâncias das duas grandes guerras e da revolução chinesa.
Losurdo acentuou a proliferação da revolução anticolonialista em dimensão planetária no período que se seguiu à segunda grande guerra mundial, após a derrota do nazifascismo, abarcando não apenas as colônias mas as lutas — com o apoio dos países então socialistas — contra a supremacia econômica racista em países como os Estados Unidos e a África do Sul.
Vigência atual das lutas
Losurdo considera que a gigantesca revolução anticolonial estimulada pela Revolução de Outubro na Rússia e pela derrota nazista em Stalingrado produziu seus efeitos históricos. E que seus fundamentos guardam vigência — quando o colonialismo não deixou de existir em sua forma clássica, a exemplo da questão palestina, onde o povo resiste heroicamente não obstante “o uso barbárico da máquina de guerra israelita” apoiada pelos EUA e pela União Européia.
Aspectos múltiplos — e com persistência contemporânea — se expressam nos desdobramentos da luta entre colonialismo e anticolonialismo no mundo e no continente americano desde o início do século XX, explicitados numa declaração de Theodore Roosevelt: à “sociedade civilizada” no seu todo pertencia um “poder de polícia internacional” a ser exercido pelos EUA na América Latina.
Esta retomada e radicalização da Doutrina Monroe, entretanto, que se reproduziu em inúmeras intervenções militares contra os países “considerados estranhos ao mundo civil e comparados a bárbaros necessitados de tutela imperial”, caiu radicalmente em crise com o fracasso de meio século de medidas de toda sorte que visavam isolar, difamar, sufocar e liquidar a revolução cubana — que hoje tem sua força e seu significado internacional confirmados pelas mudanças na Venezuela, na Bolívia, no Equador, no Brasil, na Nicarágua, no Paraguai.
Neste sentido, Losurdo assinala que, com modalidades sempre muito diferentes, está em curso na América Latina a revolução anti-colonialista e anti-imperialista.
Relevância da edificação econômica
Neste rumo, Losurdo trabalha o tema da dominação colonial e do êxito das lutas anticolonialistas articulado ao desdobramento econômico das revoluções, considerando que o processo político da libertação somente se completa vitoriosamente com a emancipação econômica dos países sublevados.
Tal fenômeno foi destacado pela conclusão de que qualquer vitória militar teria que ser sustentada sequencialmente na luta pela produção agrícola e industrial, articulando a conquista do poder político à edificação econômica. Tudo isso para que “a apoteose da independência não se transforme na maldição da independência” — nos moldes da observação de Frantz Fanon, teórico da revolução argelina.
Na prolongada conquista de seu posto milenar no desenvolvimento da civilização humana, a China possuía em 1820, à época da “Guerra do Ópio”, 32,4% do PIB mundial. A corrosiva intervenção colonialista em seu território colocara o país entre os mais pobres do planeta em 1949, no momento da fundação da República Popular da China. No mesmo ano de 1820, a Índia reunião 15,7% do PIB mundial antes de ser reduzida à condição de país miserável pelo saque produzido pelas potências colonialistas e imperialistas.
Losurdo se refere também a uma revolução dos escravos negros contra o domínio colonial num país que, no final do século XVIII, se chamava Santo Domingo e que hoje é conhecido como Haiti, mantido sob a penúria da agricultura de subsistência e ainda hoje um dos países mais pobres do planeta. A derrota dessa vitória militar se deu na supressão da edificação econômica presente na linha do líder jacobino negro Toussaint Louverture.
Grotesca arma da inaniçãoCompreende-se, portanto, no pensamento de Losurdo, o confronto no plano econômico como relevante aspecto da luta entre colonialismo e anticolonialismo, entre imperialismo e anti-imperialismo. Em numerosos momentos dessa luta — contra a Rússia Soviética, contra Cuba ou contra países simpatizantes à tendência emancipacionista —, o sufocamento foi instrumento privilegiado sob as ameaças de “fome absoluta” e “morte por inanição”.
Exemplos contemporâneos de resistência, lembra Losurdo, são atualizados em países como a Bolívia, onde a consigna “industrialização ou morte!” — que significa, na concepção de Álvaro Garcia Linera, concretizar “o desmoronamento progressivo da dependência econômica colonial”.
Este ambiente, na visão de Losurdo, valoriza a progressiva “troca comercial e tecnológica com um país como a China”, reduzindo a ameaça de asfixia econômica alardeada pelo imperialismo, imprimindo agilidade à luta contra a Doutrina Monroe no plano econômico. Nesse sentido, aponta “uma substancial convergência entre os países e povos protagonistas da revolução anticolonialista e anti-imperialista”.
Novo internacionalismo
A nova solidariedade internacionalista passa, desse modo, pela percepção de que a feição moderna das lutas de libertação, fortemente vincadas pelas necessidades emancipacionistas dos povos, requer um novo bloco histórico significativo da unidade das esquerdas — inclusive daquela que qualifica como “esquerda ocidental” (européia), tão decidida quando se tratava de apoiar os movimentos insurrecionais noutro momento — aos países e povos submetidos a tais ameaças.
Losurdo propõe, enquanto questão relevante, a necessidade da completa abolição da influência do “imperialismo dos direitos humanos” e da islamofobia, que nos dias atuais, toma o lugar do tradicional flagelo racista que se abateu historicamente sobre os negros e “peles vermelhas” em suas diversas feições. Ressalta que somente dessa forma “o movimento de oposição presente nos países capitalistas avançados poderá dar uma contribuição real à luta contra a reação”.
Trata de ressaltar a moderna e insólita contradição que expõem os EUA, no exame dos conceitos de liberdade e direitos humanos expostos em 1941 por Franklin Roosevelt, e na tradição liberal derrotada pelos fatos. “Hoje, os EUA estão em primeiro lugar a fazer pesar em cada canto do mundo o medo e a angústia dos bombardeamentos, das destruições em larga escala e até da aniquilação nuclear”. Se a proposição da “libertação do medo” exaltava a proposta da redução do armamento numa polêmica indireta com o III Reich, “hoje os EUA gastam sozinhos em armamento tanto quanto o mundo inteiro”.
Boas perspectivas
Entre as “perspectivas positivas e encorajadoras”, Losurdo destaca o reaparecimento de povos e civilizações antes aniquilados pelo colonialismo; a quebra do monopólio tecnológico do imperialismo pelo prodigioso desenvolvimento da China; a retomada do horizonte socialista para além do “terceiro mundo”, também nos países capitalistas avançados, desde a tomada de consciência da profunda crise do capitalismo e do descrédito crescente do seu país modelo, os EUA.
Não obstante a multiplicidade das contradições — as quais busca examinar — que permeiam tais “perspectivas prometedoras e ameaças terríveis”, simultâneas, Losurdo ousa ao propor que se torna “urgente a construção no plano mundial de um novo bloco histórico”, considerando que “não é uma tarefa fácil porque se trata de soldar entre si forças colocadas em contextos histórico-culturais e situações políticas e geopolíticas muito diferentes”.
Mas, como as tarefas revolucionárias nunca consistiram de facilidades, remete-as para o âmbito da retomada das tradições historicamente compatíveis com as profundas transformações: “E este novo bloco histórico, o único que pode dar um novo balanço ao internacionalismo, só poderá ser constituído se os partidos comunistas, também os dos países capitalistas avançados, por um lado recuperarem o orgulho da sua própria história, por outro reforçarem a sua capacidade de análise concreta da situação concreta”.
Luiz Carlos Antero é sociólogo, jornalista, escritor, membro da Equipe de Pautas Especiais do Portal Vermelho