14 maio, 2010

“Washington quer excomungar quem resiste”


Os Estados Unidos não se caracterizam apenas pelo seu grande poderio militar de destruição de massa, em certo sentido eles possuem instrumentos de estupidificação de massa. Eu não posso nada contra as armas de destruição de massa. Contra as armas de estupidificação, escrevi esse livro”.  A afirmação é do filósofo italiano Domenico Losurdo, estudioso de Heiddeger, Nietszche e crítico do pensamento liberal.  Losurdo veio ao Brasil divulgar seu mais recente trabalho A linguagem do Império – Léxico da ideologia americana” (Boitempo Editorial).
Nessa obra, Losurdo estuda o discurso dos EUA, para expor a ideologia que esta por trás desse discurso e para fazer a análise das categorias utilizadas – apontando as distorções e as contradições entre discurso e prática. O filósofo estudou a origem e as diferentes utilizações de termos como fundamentalismo, terrorismo, antiamericanismo e antissemitismo.

O Escrevinhador conversou com Domenico Losurdo sobre sua obra, uso da mídia pelos EUA e o discurso fundamentalista estadunidense. Confira a entrevista a seguir.
Escrevinhador O seu livro tem como objeto de estudo a linguagem do império, como o senhor iniciou este trabalho? Quais foram as fontes de pesquisa?
Domenico Losurdo Por algum tempo eu senti a necessidade de trabalhar com esta situação inédita na história: a superpotência, que sozinha abrange metade do orçamento militar mundial, atua como uma espécie de Inquisição. Os inimigos, os rebeldes são acusados de heresia e pecado imperdoável. Em seguida vem a excomunhão para quem fizer bombas. No meu livro, eu queria analisar o plano de categorias históricas e conceitos em que se pronuncia a excomunhão.
Escrevinhador Os termos e categorias analisadas pelo senhor, quando usados pelo discurso oficial imperialista, sofrem alguma modificação de significado?
Domenico Losurdo A manipulação pode se dar por meio de diferentes técnicas: 1) usando categorias unilateralmente: por exemplo, os Estados Unidos condenam o terrorismo dos outros, mas nunca os seus próprios; 2) inventando novas categorias e “pecados”: por exemplo, enquanto se considera legítima a crítica e inclusive a condenação de países como Irã, Cuba ou China, crítica ou condenação dos EUA são vistas como heresia; 3) distorcendo e utilizando de maneira terrorista certas categorias, como acontece, por exemplo, com as denúncias em relação ao expansionismo de Israel que é classificado como “antissemitismo”!
Escrevinhador O que leva a estas alterações?
Domenico Losurdo Com o intuito de combater as manipulações e distorções feitas pela “linguagem do Império”, meu livro faz simultaneamente a reconstrução histórica e a análise conceitual desta linguagem. Ao fazê-lo sigo uma estratégia dupla. Uma, obviamente, é comparar as declarações feitas em Washington com a realidade de suas políticas domésticas e internacionais. Em segundo lugar, minha estratégia é comparar a situação concreta na qual tais fenômenos, como terrorismo e fundamentalismo, emergem e as diversas formas que assumem. Da mesma forma, gostaria de saber em que circunstâncias o conflito político tende a assumir uma coloração racial? Emerge assim a extrema miséria intelectual e o perigo político representado pela ideologia da classe dominante.
Escrevinhador Qual a relação da mídia com o discurso oficial? Em geral, vemos uma mera reprodução. Faltam meios de comunicação críticos?
Domenico Losurdo A potência de fogo do Império não é apenas militar, é uma potência de fogo multimídia. Considere, por exemplo, a acusação de “antissemitismo”. Depois dos horrores de Auschwitz, esta acusação é equivalente, no plano ideológico, à bomba atômica. Então, de acordo com as relações de poder que existem atualmente no plano ideológico e na mídia, Tel Aviv e Washington, mesmo com as contradições entre eles, podem facilmente construir a acusação de “antissemitismo” contra grandes movimentos nacionais, como Hamas e Hezbollah ou contra países como Irã e Venezuela. Mas poucos no Ocidente prestam atenção ao sentimento anti árabe que se difunde em Israel, onde se torna cada vez mais forte a deportação.
Escrevinhador Quais categorias são centrais no discurso imperialista? É possível identificar os termos fundamentais que explicitam a ideologia?
Domenico Losurdo Sim, hoje Washington pretende excomungar aqueles que resistem ao império como responsáveis ou cúmplices do “terrorismo”,”fundamentalismo”,”anti-americanismo”, pró-islamismo”, “ódio contra o Ocidente” e “antissemitismo” (e usa-se “antissionismo” fraudulentamente como um sinônimo de antissemitismo). São estas categorias que utilizadas de maneira unilateral, arbitrária e distorcida, constituem o núcleo essencial da “linguagem do Império” e do “léxico da ideologia estadunidense”.
Escrevinhador Em seu livro, o senhor afirma que o termo “fundamentalismo” surge entre protestantes e de maneira autodesignatória. Como nos EUA o termo perde este sentido original e passa a ser utilizado para designar seus inimigos?
Domenico Losurdo O renomado cientista político norte-americano Huntington relatou um cálculo feito na época pelo Departamento de Defesa dos EUA: “em quinze anos (1980-1995), os EUA estiveram envolvidos em 17 operações militares no Oriente Médio, todas contra países muçulmanos”. Também houve a guerra contra o Iraque e a ameaça velada de Obama de usar a bomba nuclear contra o Irã.
Toda guerra tem sua ideologia: durante a Guerra Fria, Washington lançou a cruzada contra o “totalitarismo”, mas isso não o impediu de apoiar ou impor ferozes ditaduras militares na América Latina e em outras partes do mundo. Hoje contra o Islamismo crítico ou hostil ao Império, Washington anuncia uma cruzada contra o “fundamentalismo”, casualmente esquecendo a história deste período e persistência do fundamentalismo americano.
Escrevinhador O senhor relata a presença de elementos religiosos influindo na política, contrapondo a lei de Deus e a lei dos homens, tanto no ocidente quanto no oriente. Isso transforma questões geopolíticas em questão religiosas – como bem descreve o senador americano James Inhofe ao dizer “esta batalha não é de modo algum política, é uma controvérsia sobre o fato de a palavra de Deus ser verdadeira ou não”, referindo-se ao conflito de território entre Israel e Palestina. Qual a conseqüência dessa influência religiosa no debate político e nas negociações?
Domenico Losurdo É claro que o fundamentalismo torna difícil ou impossível a mediação. De fato, o fundamentalismo funciona como uma ideologia de guerra total, como no caso do senador americano James Inhofe, os inimigos dos EUA e de Israel se tornam inimigos de Deus. Pelas palavras de Bush Jr, e outros numerosos presidentes, os EUA são “a nação escolhida” para liderar o mundo.  O Irã não fez nenhuma declaração similar. Todos podem compreender qual fundamentalismo é mais perigoso hoje.