10.Nov.06
“Junto com a geopolítica e a geoeconomia, a actual Cruzada em defesa da Civilização elimina também a memória histórica. Estamos em presença de uma acusação que tem como alvo os povos que de quando em quando são catalogados como estranhos à civilização”
1. De ora em diante não é mais justificável haver dúvidas. O desencadeamento da última guerra contra o Iraque pode até ter sido inoportuno. É verdade, o casus belli adoptado para justificá-la revelou-se inconsistente: no país durante anos observado e espiado pelo céu, pelo mar e pela terra, e assim sistematicamente bombardeado, ocupado e passado ao crivo, não há rasto daquelas armas de destruição massiva, cuja existência tinha sido “demonstrada” pelo então secretário de Estado Colin Powell à ONU, e que, segundo Tony Blair, o regime agora derrubado estava pronto para empregar, com furor genocida, “no espaço de 45 minutos”. Sim, de uma certa maneira, um castelo inteiro de mentiras desmoronou. No entanto, as recriminações não têm mais sentido frente à tarefa urgente que se impõe ao Ocidente, que é a de enfrentar a terrível ameaça representada pelos “cortadores de cabeça” islâmicos.
Oriana Fallaci não foi a primeira a dar o sinal de alarme. Os jornalistas e a imprensa habitualmente distantes da islamofobia também se preocuparam em fazer apelo ao sentido de responsabilidade que deveria ser inerente a todo ocidental e a toda pessoa civil: na batalha, que hoje no Iraque contrapõe “marines” de um lado, e cortadores de cabeça, ou melhor, cortadores de garganta, do outro, não se pode não tomar posição pelos primeiros. Salta imediatamente aos olhos o carácter arbitrariamente selectivo da configuração do conflito; outros poderiam descrevê-lo como o confronto entre os torturadores de Abu Ghraib e as suas vítimas, ou seja como a insurreição desesperada de um povo já condenado durante longos anos a morrer de fome com um pretexto mentiroso, e agora sujeito à humilhante ocupação militar de uma legião estrangeira heterogénea.
Mas não é este o ponto mais importante. Junto com a geopolítica e a geoeconomia, a actual Cruzada em defesa da Civilização elimina também a memória histórica. Estamos em presença de uma acusação que tem como alvo os povos que de quando em quando são catalogados como estranhos à civilização. Ao visitar a Espanha em 1836, que estava então imersa numa sangrenta guerra civil, em vez de tomar posição por uma das partes, Richard Cobden chegou a uma conclusão de carácter geral em relação aos “bárbaros além do golfo de Biscaia”: trata-se de “uma nação de fanáticos religiosos, mendicantes e cortadores de garganta, com um governo de putas e canalhas”.
Evidentemente, o berço privilegiado desta acusação é constituído pelos povos coloniais ou de origem colonial. Quem se lembra ainda que a dizimação e a destruição dos peles vermelha norte-americanos foram promovidas em nome da luta contra um povo de cortadores de cabeças e de gargantas? Entre os crimes que a Declaração de Independência imputa a Jorge III está o de ter instigado, contra os colonos rebeldes, os “índios selvagens sem piedade”. Sim – especifica Thomas Paine, sempre em 1776 – a monarquia inglesa “incitou os negros e os índios a nos destruir”, ou seja a “cortar a garganta dos homens livres na América”.
É uma acusação confirmada por Marx. O Capital descreve de que modo o governo de Londres enfrenta a ameaça dos colonos rebeldes: “Por instigação inglesa e com o dinheiro inglês estes foram tomahawked [mortos a golpes de tomahawk, o machado de guerra dos peles vermelha]. O parlamento britânico declarou que os cães ferozes e o scalping eram ‘meios que Deus e a natureza tinham colocado em sua mão’”. E no entanto, após a vitória da revolução americana, o quadro muda consideravelmente. Já em 1783, um comandante inglês alerta: revigorados pela vitória, os colonos “preparam-se para cortar a garganta dos índios”; o comportamento dos vencedores – acrescenta outro oficial do governo – é “humanamente chocante”. De facto, principia o período mais trágico da história dos peles vermelha. Andrew Jackson, presidente dos Estados Unidos nos anos em que Tocqueville analisa a “democracia na América” no campo e a celebra, ascende à mais alta magistratura do país após distinguir-se na caça aos índios, por ele considerados como “cães selvagens”. A respeito disto citamos as palavras de outro historiador americano da nossa época: “Elogiando-se de “ter sempre conservado a cabeça daqueles que havia matado”, o mesmo Andrew Jackson […] dirigiu a mutilação de cerca de oitocentos cadáveres de índios creek – os corpos de homens, mulheres e crianças que ele e seus homens haviam massacrado – amputando-lhes o nariz para contá-los e conservá-los como testemunho de suas mortes, e cortando longas tiras de pele para tingi-las e transformá-las em breios.
Procedendo, na ocasião da revolução americana, à troca de acusações já vista, as duas fracções em que se cindiu o partido liberal da comunidade branca observam ambas um rigoroso silêncio sobre o destino reservado, pelo Império britânico como um todo, aos nativos investidos pela expansão colonial. Para saber alguma coisa sobre este assunto temos mais uma vez que recorrer à análise marxista da “acumulação originária”: “Aqueles sóbrios vitoriosos que são os puritanos da Nova Inglaterra colocaram em 1973, através de resoluções de sua assembly, um prémio de 40 libras sobre cada scalp de índio e por cada pele vermelha feito prisioneiro; em 1720 colocaram um prémio de 100 libras para cada scalp, em 1744, após Massachussets-Bay ter declarado rebelde uma certa tribo, os prémios seguintes: por um scalp de homem de doze anos acima, 100 libras da nova moeda; por prisioneiros homens, 105 libras; por scalps de mulheres e crianças, 50 libras!”.
O silêncio sobre este capítulo da história desempenha uma importante função ideológica. George Washington pode tranquilamente assimilar os “selvagens” pele vermelha a “animais selvagens da floresta” (Wild Beasts of the Forest). E, com quase um século de distância, na Califórnia que foi arrancada do México, “a degradação e a destruição dos índios” tornam-se, citando outro historiador dos Estados Unidos, “um tipo de desporto popular”.
Se os pele vermelha, como peso morto, são destinados a serem eliminados da face da terra, os negros, úteis como instrumentos de trabalho e gado humano, sofrem a morte somente quando se opõem a sua condição de escravos e se rebelam contra os seus patrões. Em tal caso, a execução dos culpados deve assumir um carácter exemplar e pedagógico. Como demonstra, na Luisiana de 1811, a repressão de uma revolta de escravos negros: as cabeças dos culpados são fixadas em piques e colocadas em exposição no local do delito.
2. É uma prática à qual o Ocidente recorre talvez com frequência particular no quadro de seu relacionamento com os povos árabes e islâmicos, hoje acusados de serem os cortadores de cabeça por excelência. Durante a sua expedição ao Egipto, frente à recusa de um notável egípcio de ceder aos invasores uma parte consistente do seu rico património, “Bonaparte ordenou que lhe cortassem a cabeça e que a passeassem por todas as ruas do Cairo com o seguinte cartaz: “Assim serão punidos todos os traidores e os perjúrios”. E, contudo, a tentativa de aterrorizar a população não atingiu o seu objectivo. Estouraram revoltas aqui e ali. Então – prossegue o historiador soviético aqui citado – Bonaparte “enviou ao local seu ajudante Crouazier para que assediasse a população rebelde, exterminasse todos os habitantes de sexo masculino sem excepção e levasse ao Cairo as mulheres e as crianças, entregando a aldeia às chamas. A ordem foi executada ao pé da letra. Muitas mulheres e crianças morreram durante a longa caminhada até o Cairo. Algumas horas após a expedição punitiva, a praça principal do Cairo mostrava o estranho espectáculo de longas filas de burros carregados de sacos: os sacos foram abertos e sobre a praça rolaram as cabeças dos homens da tribo rebelde, justiçados”.
A prática de cortar a cabeça dos culpados e de exibi-las com finalidade pedagógico-terrorista não termina com a derrota de Napoleão. Durante a sua viagem à Argélia – estamos nos anos da França liberal da Monarquia de Julho – em Philippeville, Tocqueville é convidado para almoçar com um coronel do exército de ocupação, o qual traça um quadro eloquente da situação: “Senhores, somente com a força e o terror se pode conseguir tratar com esta gente […] Outro dia na estrada foi cometido um assassinato. Trouxeram-me um árabe que era suspeito. Interroguei-o e em seguida mandei cortarem-lhe a cabeça. Poderão vê-la na porta de Constantina”.
Tocqueville não se distancia deste comportamento, que para ele parece inserir-se entre as “necessidades desagradáveis” das quais é necessário encarregar-se quando se está empenhado em uma “guerra contra os árabes”. Na luta contra estes, é necessário “destruir tudo aquilo que se parece com uma agregação permanente de população ou, por outras palavras, com uma cidade”; é “da mais alta importância não deixar subsistir ou surgir cidade alguma nas regiões controladas por Abd-el-Kader”, o líder da resistência. Não podemos nos deixar submergir pelos escrúpulos morais: “Ouvi frequentemente em França homens que respeito mas não apoio que eles consideram censurável o facto de que se queimem as colheitas, se esvaziem os silos e que por último se apoderem dos homens desarmados, das mulheres e das crianças.
Trata-se, para mim, de necessidades desagradáveis, mas às quais deverá sujeitar-se todo povo que quiser combater contra os árabes”.
Quando se tem de tratar com islâmicos, a prática de cortar as cabeças pode recair até sobre cadáveres já apodrecidos. Em 1898, com a batalha de Omdurman, a Grã-Bretanha consegue novamente sujeitar o Sudão, que precedentemente tinha derrotado os ingleses e conquistado a independência. Neste momento os brancos super-homens sentem a necessidade de resgatar a humilhação imediata: não se limitam a acabar com os inimigos horrivelmente feridos pelas balas dumdum. Devastam o túmulo do Mahdi, o inspirador e protagonista da resistência anti-colonial: o seu cadáver é decapitado; enquanto o resto do seu corpo é jogado ao Nilo e a cabeça é passeada como um troféu.
3. Exibidas com objectivo pedagógico-terrorístico, as cabeças cortadas configuram às vezes uma espécie de troféu de caça. Em 1890 Joseph Conrad faz a sua viagem para a África e o Congo, recolhendo as informações e sugestões que em seguida se encontram em Coração de Tenebra e na descrição aqui contida dos horrores da expansão e da dominação coloniais: pensem nas “cabeças [dos rebeldes] deixadas à secar sobre piques sob as janelas do senhor Kurtz” - o esclavagista que é o personagem-chave do romance.
Por fim, pode ocorrer que o troféu de caça se transforme em lembrança. Vimos Jackson obstinar-se sobre os corpos dos índios mortos e escalpelados. Isto não nos impede de cultivar pensamentos de uma certa maneira gentis: a ele agradava verificar pessoalmente “que os souvenirs provenientes dos cadáveres eram distribuídos ‘às senhoras do Tennessee”.
A um tratamento análogo são sujeitos, no sul dos Estados Unidos, os negros que ousam contestar o regime de white supremacy. Vejamos de que maneira se conclui um linchamento no Arkansas em 1921. Uma multidão de quinhentas pessoas, entre as quais não poucas mulheres, desfruta o espectáculo prolongado de um negro que seus torturadores colocam para queimar em fogo lento e que em vão tenta apressar a própria morte. Quando esta finalmente chega, intervém aí a disputa para apoderarem-se “como souvenirs” os ossos da vítima.
Três anos depois, um jovem indochinês (Nguyen Sinh Cung), desembarcado nos Estados Unidos à procura de trabalho, assiste horrorizado a um linchamento: “O negro é colocado para cozer, é torrado e queimado. Mas ele merece morrer duas vezes em vez de uma só. É enforcado, ou, mais exactamente, é levado à forca aquilo que resta do seu cadáver… Quando todos estão saciados, o cadáver é descido”.
De novo intervém o momento alegre da aquisição dos souvenirs. Os espectadores e as espectadoras mais finos ou mais modestos contentam-se com um pedaço da corda utilizada durante o suplício. “No chão, envolvida num fedor de gordura e de fumaça, uma cabeça preta, mutilada, tostada, deformada, faz uma careta horrível e parece perguntar ao sol que se põe: “É esta a civilização?”.
A infausta tradição aqui sumariamente evocada se manifesta novamente durante a segunda guerra mundial. Enquanto de um lado, querendo também macaquear a branca e ocidental raça dos senhores, os japoneses sujam-se com os crimes mais horríveis, primeiro contra os chineses e os povos da Ásia oriental, eles são por sua vez assimilados à bárbaros e até a verdadeiros animais, pelos seus inimigos que pretendem encarnar o Ocidente autêntico: “Que mal havia, então, se alguns limpavam, lustravam e mandavam para casa os seus crânios de animais como souvenir?”. Voltam ao seu auge as práticas que já conhecemos: “Uma fotografia instantânea comum mostra um soldado ou um marine que exibe orgulhosamente um crânio japonês bem lustrado, enquanto uma poesia daquele período, de Winfield Townley Scott, reflecte, sem comentário moral algum, em The U.S Sailor with the Japanese Skull (O marinheiro norte-americano com o crânio japonês): “…o nosso/ Marinheiro, ou seja, um rapaz com cerca de vinte anos, vagueava em Agosto/ Entre os pequenos corpos na areia e andava à caça/ De lembranças: dentes, plaquinhas, diários, botas; mas ainda mais ousado/ Cortava uma cabeça e a escalpelizava-a debaixo de uma árvore de ginkgo biloba”. Em seguida o marinheiro arrasta-a durante muitos dias atrás do barco e finalmente limpa-a cuidadosamente com lixívia e obtém assim uma lembrancinha perfeita”.
Apenas terminada a guerra, em Fevereiro de 1946, o Athlantic Monthly reconhece: “Disparamos contra os prisioneiros a sangue frio, destruímos os hospitais, metralhamos à baixa quota as chalupas salva-vidas, matamos e maltratamos os civis inimigos, executamos os feridos, jogamos os moribundos numa fossa com os mortos, e no Pacífico cozinhamos os crânios dos inimigos para eliminar a carne em volta e transformá-los em bibelots para as noivas ou esculpimos os ossos até obtermos facas corta-papel”.
4. Podemos ao menos considerar concluída com a segunda guerra mundial a infausta tradição de que se trata? Voltemos à Nguyen Sinh Cung, o jovem indochinês que já vimos acima. Ele denuncia a infâmia do regime de supremacia branca e do Ku Klux Klan, por ele comparado ao fascismo, em Correspondance Internationale (a versão francesa do órgão da Internacional Comunista). Dez anos depois ele retorna à pátria e adopta o nome, com o qual ainda mais tarde se tornará conhecido no mundo inteiro, de Ho Chi Minh. Haverá uma ligação entre o horror por ele sentido pelo destino reservado aos infelizes negros na democrática América e a determinação com a qual ele guia a luta de liberação nacional primeiro contra a França e depois contra os Estados Unidos? O certo é que na Indochina também, há décadas de distância da queda do Terceiro Reich, a raça dos senhores conserva os seus costumes. O protagonista do romance de Conrad, o senhor Kurtz ainda parece ser o modelo, pelo menos segundo o que relata um docente americano numa revista americana, a respeito de um agente da CIA, que viu no Laos “uma casa decorada com uma coroa de orelhas arrancadas das cabeças de comunistas [indochineses] que foram mortos. Nem mesmo após a morte merecem respeito a cabeça e o corpo dos bárbaros. É recente a notícia, proveniente de Bagdad, de um vídeo “que mostra uma patrulha [americana] que dá risadas e brinca com o corpo de um iraquiano morto dentro de sua camioneta”. Tudo deixa presumir que a vítima perdeu a vida por erro. Mas isto não afecta o bom-humor das tropas de ocupação. Como esclarece a legenda colocada ao lado das fotos publicadas pelo Corriere della Sera, “o pior ainda deve começar. Um soldado dos EUA se aproxima do corpo, sacode-o. “Faça-o fazer tchau com a mãozinha”, diz-lhe um companheiro. E ele pega a mão do morto para o último insulto”. Mas este insulto e os outros consumidos em Abu Ghraib e que continuam a ocorrer diariamente no Iraque não impedem aos culpados de indicar como “cortadores de cabeça” e “cortadores de garganta” os inimigos que o Império e a raça dos senhores encontram progressivamente pelo seu caminho.
Este artigo foi enviado a odiario.info pelo autor,nosso amigo e colaborador especial.
Tradução de Gabriela Vaz Rodrigues
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