Numa série de artigos publicados nesta coluna tratamos da relação conflituosa, às vezes explosiva, entre o liberalismo e a democracia política (vejam links abaixo). Buscamos, seguindo as preciosas indicações de Losurdo e Quartim de Moraes, demonstrar que
Lembramos, por exemplo, que os principais ideólogos da burguesia, os liberais, foram porta-vozes do sufrágio censitário – baseado na renda – e/ou do sufrágio qualificado (baseado na educação formal e/ou nas funções sociais exercidas). As duas formas de sufrágio teriam por finalidade excluir as classes populares do jogo político.Democracia, para eles, era quase que um sinônimo de “despotismo das massas”.
John Stuart Mill (1806-1873), um liberal bastante avançado para sua época, chegou a declarar: “Considero inadmissível que uma pessoa participe do sufrágio sem saber ler, escrever e, acrescentaria, sem possuir os primeiros rudimentos de aritmética”. Em outra passagem, sem meias palavras, afirmou: “Um empregador é mais inteligente do que um operário por ser necessário que ele trabalhe com o cérebro e não só com os músculos (...) Um banqueiro, um comerciante serão provavelmente mais inteligentes do que um lojista, porque têm interesses mais amplos e mais complexos a seguir (...) Nestas condições, poder-se-iam atribuir dois ou três votos a todas as pessoas que exercessem uma destas funções de maior relevo.”
Naqueles artigos tratamos apenas da análise da gênese da democracia e não das características que ela foi assumindo ao longo dos últimos séculos. A democracia política, ao contrário do que pensavam os operários e burgueses no século XIX, demonstrou que poderia ser funcional ao capitalismo. Por isso mesmo, a resistência burguesa foi se reduzindo pouco a pouco. Reduziu mas não foi completamente eliminada. A democracia política não é - e jamais será - um valor universal para ela e seus ideólogos.
Paradoxalmente, no início do século XX, os ideólogos do fascismo foram buscar no arcabouço liberal clássico muitas de suas teses iniciais sobre o direito à participação política das massas populares. Vejamos o que afirmou Mussolini, em 1925, logo após a sua triunfal “Marcha sobre Roma”: “é absurdo conceder os mesmos privilégios a um homem inculto e a um reitor de universidade. Não é abaixando as classes elevada que se cria a igualdade (...) Atribuem-me a idéia de restringir o sufrágio universal. Não! Todo cidadão conservará seu direito de voto ao parlamento de Roma. Mas um professor universitário ou um grande técnico deve ter mais uma palavra a dizer do que um carregador e um analfabeto”. Mussolini também, como a maioria dos liberais dos séculos XVIII e XIX, era contrário ao sufrágio feminino. No mesmo discurso, citado acima, declarou: “Sou partidário do sufrágio universal, mas não do sufrágio feminino”.
Naquela época, poucos se espantaram com tal declaração, pois ela estava dentro do senso comum liberal-conservador imperante. Mesmo o sufrágio universal masculino era uma novidade na grande maioria dos países capitalistas e as mulheres ainda não tinham direito ao voto nem na Inglaterra, mãe do liberalismo, e nem na França, terra da revolução liberal-democrática.
Este descompasso entre democracia política e liberalismo ainda podia ser sentido na segunda metade do século XX. Um dos fundadores do neoliberalismo, Von Hayek, chegou a defender que não haveria nenhuma incompatibilidade entre sufrágio censitário, exclusão política das mulheres e a democracia. Escreveu ele: “É útil recordar que, no país em que a democracia é mais antiga e mais bem-sucedida, a Suíça, as mulheres ainda são excluídas do voto e, pelo que parece, com a aprovação da maior parte delas. Também parece possível que, numa situação primitiva, um sufrágio limitado, por exemplo, somente aos proprietários de terra consiga formar um Parlamento tão independente do governo que possa controlá-lo de modo eficaz.”
Continuou o decano do neoliberalismo: “nem o mais dogmático dos democratas pode afirmar que toda e qualquer ampliação da democracia é um bem.. Independentemente do peso dos argumentos a favor da democracia, ela não é um valor último, ou absoluto, e deve ser julgada pelo que realizar. (...) a decisão relativa à conveniência ou não de se ampliar o controle coletivo deve ser tomada com base em outros princípios que não os são da democracia em si”. Os princípios aos quais ele se refere são: a defesa da propriedade privada e da “livre iniciativa” (para o capital). Dentro deste esquema limitado, as ditaduras de direita, sob determinadas condições, também poderiam se tornar “os melhores métodos” para os fins últimos propostos. Não deixa de ser irônico que os liberais ainda sustentem que é a esquerda que tem uma visão limitada e instrumental da democracia política.
Liberalismo e colonialismo
Mas é em relação ao problema do colonialismo que o velho e o novo liberalismo mais se aproximam das teorias reacionárias e proto-fascistas. Ao contrário do que geralmente se pensa, o liberalismo na sua forma clássica não se constituiu um entrave ao colonialismo e ao imperialismo nascente. Ele forneceu as justificativas ideológicas para expansão européia - e mais tarde a norte-americana – sobre a África, a Ásia e a América Latina.
Um liberal do porte de um Tocqueville comemorou assim a vitória inglesa sobre a China na infame Guerra do Ópio: “Eis afinal a mobilidade em combate contra o imobilismo chinês! Trata-se de um acontecimento grandioso, sobretudo quando se considera que é mera continuação, última etapa numa série de acontecimentos da mesma natureza, que gradativamente vão empurrando a raça européia para além de suas fronteiras, submetendo sucessivamente todas as outras raças ao seu império ou sua influência (...); é a sujeição das quatro partes do mundo, por ora da quinta parte. Por isso, é bom não se maldizer demais o nosso século e a nós mesmos; os homens são pequenos, mas os acontecimentos são grandiosos”.
John Stuart Mill, por sua vez, na sua obra clássica Da Liberdade, afirmou: “O despotismo é uma forma legítima de governo quando se está a lidar com bárbaros, desde que o fim seja o progresso e os meios sejam justificados pela sua real consecução. A liberdade, como princípio, não é aplicável em nenhuma situação que anteceda o momento em que os homens se tenham tornado capazes de melhorar através da livre discussão entre iguais. Até então não haverá nada para eles, salvo a obediência absoluta a um Akbar ou a um Carlos Magno se tiveram sorte de encontrá-los.” Para ele, liberdade e democracia só teriam plena validade no mundo ocidental-capitalista e não poderiam ter nenhum valor universal.
Estas idéias continuam presentes quase dois séculos depois. Karl Popper – liberal e defensor das chamadas “sociedades abertas” – num artigo recente escreveu: “Libertamos esses Estados (as colônias) de modo muito apressado e simplista” e comparou este fato ao de “se abandonar uma creche a si mesma”. O que ele se esqueceu de dizer é que a libertação das colônias não foi dádiva das metrópoles, mas uma conquista arrancada com muita luta, em muitos casos precisou-se de anos de guerras de libertação sangrentas. As potências ocidentais, entre elas a França, utilizaram-se dos meios mais bárbaros para manter seus impérios coloniais. O filme Batalha de Argel retratou bem esses métodos ditos civilizados.
O fim da União Soviética e das experiências socialistas no Leste Europeu ocasionou uma profunda alteração na correlação de forças mundial a favor do imperialismo. Isso teve impacto no campo da luta de idéias. O liberalismo – na sua versão neoliberal – tornou-se amplamente hegemônico e velhos valores, anteriores as revoluções socialistas e anti-coloniais, adquiriram um novo vigor. Hoje, justifica-se a guerra e a ocupação de territórios do terceiro-mundo em nome da liberdade, a democracia e dos direitos do homem. Novamente, a barbárie capitalista se impõe em nome da civilização e do progresso.
Conclusão
Não pretendemos aqui colocar um sinal de igualdade entre liberalismo e fascismo. Após a trágica experiência de ascensão de Hitler ao poder na Alemanha, a esquerda aprendeu a importância de distinguir fascistas de liberais. A confusão neste terreno conduziu os trabalhadores a uma das maiores derrotas de sua história, que ocorreu num fatídico janeiro de 1933.
Se fascismo e liberalismo não são iguais, tão pouco existe entre eles uma muralha intransponível. Diria mesmo que existem mais pontos de convergência do que sonha nossa vã filosofia. Isso se explica, fundamentalmente, pois os dois são expressões ideológicas de uma mesma e única classe: a burguesia. Esta constatação não é secundária.
Durante as últimas décadas, os ideólogos burgueses procuraram reverter o jogo e colocaram um sinal de igualdade entre o comunismo e o nazismo, taxando-os indistintamente de totalitários. Neste esquema, a contraposição ao totalitarismo (comunista e nazista) seria feita pelo liberalismo. Numa mesma operação ideológica, o termo liberalismo foi amalgamado com o de democracia. Os pais do liberalismo foram promovidos a pais da democracia moderna. Constituiu-se, assim, o mito ou a fórmula mais eficiente da política moderna: igualar liberalismo e democracia.
Ironicamente escreveu Quartim de Moraes: “Os politicólogos liberais costumam enfatizar as semelhanças entre fascismo e comunismo, apresentando-os como duas variantes do que chamam de totalitarismo (...) (mas) qualquer estudo histórico-estatístico minimamente objetivo mostraria que a quantidade de liberais que aderiram ao fascismo foi incomparavelmente maior do que a de comunistas”. Por fim, não “foi nos países do extinto bloco soviético que os exterminadores de judeus e de comunistas, membros da SS ou esquadrões da morte (...) encontraram refúgio, mas principalmente no muito liberal Canadá”. Acrescentariamos que, atualmente, já se comprovou a existência de uma operação secreta realizada pelo governo norte-americano – em conluio com o Vaticano - para dar cobertura para a fuga de criminosos de guerra, especialmente de cientistas alemães.
No entanto, foi no nosso continente que o conluio entre liberais e fascistas tornou-se mais evidente – uma aliança que produziu uma das páginas mais sombrias da nossa história. Os liberais latino-americanos foram a vanguarda política da maior parte dos golpes militares ocorridos ao longo do século XX, inclusive no Brasil. Por aqui, em 1964, os muito liberais Estadão, o grupo Folha e a UDN, conclamaram abertamente a intervenção militar e aplaudiram a repressão que se seguiu à autodenominada “redentora”.
Os ideólogos neoliberais fizeram um grande esforço para retirar as ditaduras sangrentas, como a de Pinochet, da lista de regimes ditos totalitários. Eles foram definidas apenas como regimes autoritários. Mal menores diante da ameaça do totalitarismo comunista.
Escreveu Von Hayek, “o oposto de democracia é governo autoritário: do liberalismo é totalitarismo. Nenhum dos dois sistemas exclui necessariamente o oposto do outro: a democracia pode exercer poderes totalitários, e um governo autoritário pode agir com base em princípios liberais”. E continuou: “Devo confessar que prefiro governo não-democrático sob a lei a governo democrático ilimitado”. Por isso ele e Friedman – dois papas do neoliberalismo – deram apoio aberto e assessoraram o governo “não-democrático” de Pinochet.
Maior exemplo da possibilidade de articulação entre neoliberalismo e fascismo pode ser extraído da vergonhosa entrevista dada pelo próprio Hayek ao jornal chileno EL Mercúrio em abril de 1981. Depois de apoiar a ditadura, justifica: “Uma sociedade livre requer certas morais que em última instância se reduzem à manutenção das vidas; não à manutenção de todas as vidas, porque poderia ser necessário sacrificar vidas individuais para preservar um número maior de vidas. Portanto, as únicas normas morais são as que levam ao ‘cálculo de vidas’: a propriedade e o contrato”. Naquele momento, em que o Hayek dava tranquilamente sua entrevista, muitas vidas estavam sendo sacrificadas nos porões da ditadura fascista do general Pinochet.
Bibliografia
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LOSURDO, Domenico – Fuga de história?, Ed. Revan, RJ., 2005
------------------------ - Democracia e bonapartismo, Ed. Unesp e UFRJ, 2005.
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MORAES, Reginaldo – Neoliberalismo: De onde vem, para onde vai?, Ed. Senac, SP., 2001
* Historiador, mestre em ciência política pela Unicamp
Fonte: http://www.vermelho.org.br/coluna.php?id_coluna_texto=323&id_coluna=10